Durante dois anos, me mudei para o norte do estado de Nova York para me dedicar ao meu mestrado em estudos curatoriais pelo Center for Curatorial Studies (CCS) na Bard College. O meu interesse como trabalho de conclusão foi discutir os mecanismos de controle usados pelo governo e pelo mercado imobiliário para manipular comunidades no espaço urbano. Como existem vários destes mecanismos, decidi me dedicar a um só: a nomenclatura de ruas e bairros. O princípio foi entender como uma simples mudança de nome pode afetar diretamente uma determinada comunidade e começar um processo de gentrificação rápido e insensível.
Para tanto, usei obras de quatro artistas de diferentes nacionalidades, gênero e idade para apontar sobre as plurais percepções sobre o espaço urbano e como ele interfere diretamente na vida que levamos nas grandes cidades. O meu ponto de partida foi um conto de Italo Calvino, presente no livro “Cidades Invisíveis”, em que ele descreve a cidade de Zaira, um lugar onde a navegação pelas vias se dá por meio da memória e do laço afetivo que se tem com a infraestrutura arquitetônica do espaço:
Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões. Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado; o fio esticado do lampião à balaustrada em frente e os festões que empavesavam o percurso do cortejo nupcial da rainha; a altura daquela balaustrada e o salto do adúltero que foge de madrugada; a inclinação de um canal que escoa a água das chuvas e o passo majestoso de um gato que se introduz numa janela; a linha de tiro da canhoneira que surge inesperadamente atrás do cabo e a bomba que destrói o canal; os rasgos nas redes de pesca e os três velhos remendando as redes que, sentados no molhe, contam pela milésima vez a história da canhoneira do usurpador, que dizem ser o filho ilegítimo da rainha, abandonado de cueiro ali sobre o molhe.
A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.
Cada artista escolhido (Milton Machado, Claudio Bueno, VALIE EXPORT e Teresa Margolles) aborda diferentes pontos de como esta estrutura urbana interfere em nossa vida cotidiana. A cidade não é apenas um lugar para se morar, mas um sistema de fluxos, comunicações e controle que determinam inclusive a nova psicologia. Milton Machado, por exemplo, com o seu trabalho “História do Futuro”, demonstra com a sua figura do Nômade o movimento constante da sociedade em relação ao projeto ideal de uma cidade em constante construção. Claudio Bueno, por sua vez, demonstra as interferências que o digital pode provocar na fisicalidade do espaço sem nem ao menos precisar construir algo: tudo fica no plano virtual, acessível a qualquer momento. Já VALIE EXPORT, com suas performances no espaço urbano, questiona o quão agressiva é a arquitetura da cidade e como ela influencia no nosso processo psiquíco. E, por fim, Margolles aponta para as questões sobre imigração e fronteiras que existem entre países, por mais que elas cortem uma mesma malha urbana.
Para saber mais, publiquei no site da faculdade a introdução de meu mestrado. Ainda estou procurando uma publicação para divulgar a tese na íntegra, mas enquanto isso o capítulo inicial (em inglês ainda, mas em breve traduzo para o português) dá uma boa explicação sobre a pesquisa inteira. Junto ao texto, fiz uma exposição também com as obras dos artistas dentro do espaço expositivo de um museu. Embora não se dá para ter a real noção sobre como é o espaço, é uma bela documentação sobre o processo.
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[…] Hoje, quando leio, há várias citações, explicações, referências que mudaria e vários — tipo, váááários — parágrafos que cortaria ou tentaria resumir. Mas, de qualquer forma, segue ela na íntegra. Ela foi desenvolvida junto a uma exposição homônima que ocupou duas galerias do Hessel Museum of Art. As imagens vocês podem conferir neste post. […]