De uns tempos para cá, os movimentos sociais que mais me interessaram não tinham a ver com rupturas ou quebras de leis. Eram sim mudanças na sociedade, estruturais, mas que visam a afirmação de um direito já conquistado por lutas sociais mais antigas.
Hoje, vê-se a luta pelo resgate das leis, pela reafirmação de direitos que, por motivos diversos, foram esquecidos de nossa sociedade, embora sejam um direito.
Estamos em um modelo de obediência civil.
A luta pela igualdade, de acabar com a opressão de determinada parcela da soceidade, trouxe o conceito de desobediência, em que a mudança social não vem por meio de armas, mas simplesmente pela expressão da mudança que se quer ver no mundo (como Mahatma Gandhi demonstrou para o mundo, usando a teoria de Henry Thoreau, em sua luta anti-colonialista na Índia). A força bruta, os “fórceps”, não era usada. Apenas a desobediência, o ato, como forma de protesto.
O movimento Transparência Hacker, atualmente, não precisa mais lutar e se articular pelo direito de ter acesso a dados públicos dos órgãos governamentais. O direito, que é universal, já existe. O que foi preciso foi uma articulação para que leis dessem respaldo e regulamentassem a publicização das informações. Hoje, a lei também já existe (e entrará em vigor a partir de 18 de maio de 2012). O que o movimento faz é hackear o sistema atual para trazer ao cidadão um direito garantido e que não é explorado por motivos por demais aleatórios. É a luta pela reafirmação do que já foi discutido, qualificado e aplicado e que foi esquecido pela sociedade. São valores importantes para garantir que a cidade e os processos públicos sejam, na prática, democráticos.
As lutas sociais anteriores, que se via nas décadas de 1960, 1970 e 1980, eram pela criação de respaldo para uma nova sociedade, para novos direitos que até então não existiam legalmente. Graças a essas lutas, hoje temos diversos mecanismos para garantir que os estados sejam democráticos e que a população se engaje na criação de seu espaço público.
Mas cadê?
É por isso que o Thacker trabalha com a criação de cultura sobre transparência e dados abertos. É para informar e cativar o interesse dos diferentes grupos atuantes da e na sociedade civil sobre a importância de ter acesso às informações referentes aos órgãos do governo. Como diz Daniela Silva, membra do grupo: “criar cultura tem um pouco a ver com priorizar uma necessidade de inventar e legitimar práticas sociais necessárias para gerar qualquer tipo de mudança”. Se já existe o respaldo legal, é preciso o respaldo civil, da sociedade, para que aquele direito realmente esteja presente nas relações cotidianas. “Parece bem óbvio, mas muitas vezes a necessidade de criar cultura em torno de um tema ou de uma prática perde prioridade em relação, por exemplo, a necessidade de articular instituições, viabilizar ações financeiramente, fazer lobby, aprovar leis e regulamentações”, complementa.
Outro movimento que acompanhei de perto e que também se enquadra nesses preceitos de trazer de volta aquilo que já é um direito é o Festival BaixoCentro. Usar os espaços públicos em São Paulo é tão incomum que quando se organiza um simples piquenique em cima do Minhocão se é capa dos principais jornais do país. A cidade, a metrópole, perdeu a função social de servir aos cidadãos, de promover espaços para interlocução, conversas, encontros e construção de comunidades. O dito progresso foi fechando a cidade em si mesma de tal forma que nem percebemos que perdemos a noção de direito à cidade.
Quando organizamos o Festival, uma das preocupações (que eu até demorei para entender por completo) era não pedir autorização para nenhum órgão governamental para ocupar as ruas. Por quê? Porque não se precisa. Pelo direito Constitucional e pelas leis federal, estadual e municipal, os cidadãos podem ocupar os espaços públicos como bem querem, tendo como limite o cuidado com o patrimônio e a livre-circulação. De resto, a praça perto de sua casa pode – e deve – ser usada para cinemas ao ar livre, reuniões de tricô ou aulas de yoga. É um direito do cidadão usar as áreas públicas.
O Festival surge para conscientizar sobre essas situações. Foi por isso que, junto com alguns advogados, criamos dois panfletos que orientam a ocupação das ruas para distribuir entre o público e os artistas, “Passos para a Dança” e “Carta às autoridades”. São apenas algumas sugestões de argumentos para dar a alguma autoridade ou a um morador descontente que vier discutir.
É a criação da cultura de ocupação, de que temos o direito – e, novamente, o dever – de usar aquilo que é nosso de forma consciente. É trazer de volta à sociedade o conhecimento sobre o que ela pode ou não fazer, e como aproveitar o melhor disso tudo. O termo “obediência” pode trazer uma carga até pejorativa para a luta social (afinal, sempre se carrega a ideia de que mudanças surgem pela ação contrária ao que está imposto, e não pela afirmação), mas deve-se prestar atenção na reafirmação dos valores que foram esquecidos. É o meio para trazer de volta a cultura daquilo que já nos é garantido. Como finaliza Daniela, “eu diria que o essencial é priorizar o processo em vez dos produtos”.
Os produtos surgirão pelas pessoas afetadas por essa mudança de cultura.