É muito difícil conversar sobre o digital em ambientes culturais ou artísticos.
Não é algo que museus, instituições culturais, artistas, produtores, educadores, e tantos outros profissionais se dedicam para incorporar em suas tarefas diárias.
Há um certo argumento de que, para tanto, são necessários grandes investimentos em tecnologias que ficariam obsoletas em poucos anos, ou contratar profissionais extremamente especializados, difíceis de achar no mercado e que, de duas uma: ou sabem de tecnologia, ou entendem de arte.
Nunca os dois campos podem estar sobrepostos.
E, se estavam, eram em nichos específicos como a artemídia, net art, e tantas outras vertentes artísticas que englobam as tecnologias em seus processos de produção.
E eram nichos mesmos, que ficavam excluídos das discussões sobre o mundo da arte ou nem eram cogitadas em instituições museológicas mais tradicionais.
A tecnologia, enfim, era vista como um alien, que existia sobrevoando sobre a vida de todos os profissionais e instituições culturais, e escolhia apenas poucos para abduzir e levar para o mundo de bits, pixels, volts, e fibra óptica.
Um universo paralelo, por fim, de gente com uma conexão outra que não a mundana.
Há uns anos, eu fui conselheiro da cadeira de Arte Digital do Conselho Nacional de Política Cultural do Ministério da Cultura (quando se ainda tinha um ministério…) com o objetivo de discutir o Plano Nacional de Cultura.
A experiência foi um tanto quanto exemplar sobre a situação que acabei de descrever.
Havia divers as discussões que, primeiro, diziam que a cadeira não deveria existir já que não era algo representativo no setor cultural (hahahahaha) e, segundo, que Arte Digital, na verdade, deveria ser mudada para a Cultura Digital.
Só esse segundo tópico consumiu horas e horas do grupo de conselheiros do Brasil inteiro para entender se fazíamos uma moção ou não para mudar o nome da cadeira.
Para deixar claro a diferença: Arte Digital considera apenas o setor artístico, como museus, instituições culturais, produção artística, etc, em relação às tecnologias; e Cultura Digital é mais abrangente, envolvendo democratização de acesso às TICs, conectividade, inclusão digital, etc.
Ou seja, dois mundos complementares, que podem estar conectados, mas apontam para caminhos completamente díspares.
No fim, nós fizemos uma moção para separar os dois tópicos, desmembrando a Cultura Digital para uma cadeira própria.
Isso faria com que os dois temas ficassem separados, dando força às discussões sobre políticas públicas para a arte digital.
Eu, porém, nem consegui completar o meu pequeno mandato de dois anos, pois logo depois da nossa primeira reunião nacional veio o golpe e… já sabemos no que deu.
Tudo isso para explicar que antigamente, na era pré-covid, discutir sobre arte e tecnologia exigia um esforço hercúleo para ser levado a sério e considerado no setor artístico e cultural.
Muitos de nós, que trabalhamos com a temática, tentamos por anos “normatizar” o processo, explicando que com a revolução que a internet trouxe era apenas questão de tempo para que as instituições museólogas se vissem obrigadas a considerar as tecnologias dentro do seu departamento artístico, e não de TI.
Para exemplificar que isso é mesmo uma realidade, o Comitê Gestor da Internet no Brasil, o CGI.br, fez o estudo “TIC Cultura: Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Equipamentos Culturais Brasileiros”.
Reparem que o foco do CGI são as TICs, ou seja, um tema mais para Cultura Digital do que para a Arte Digital, mas que mostra e muito como os museus e instituições museólogas trabalham com as tecnologias dentro de suas estruturas.
Há diversos dados nesta pesquisa que comprovam e muito o descaso com as tecnologias neste setor, mas um que deixa isso muito claro é que de todas as instituições entrevistadas, nenhuma possuía alguma atividade de formação de público somente à distância. 0%!
Nenhum museu tinha um plano de formação que apenas usava uma das facilidades da internet, que é atingir um público muito mais amplo do que o atingido pela sua sede física.
Para não ser injusto, 5% dos museus entrevistados disseram que fazem tanto atividades educativas à distância quanto físicas nos museus.
Mas esse número chega a ser irrisório se considerarmos COMO esses serviços à distância são feitos e POR QUEM (que é uma pergunta muito importante e eu vou voltar a isso em breve).
Ok, nenhum museu é obrigado a dar aulas online ou fazer formações via Skype (na época não existia Zoom).
Mas é importante também entender quantas dessas instituições possuem suporte para as tecnologias de alguma equipe especializada.
Esse, porém, é um dado um tanto quanto controverso.
Há sim instituições que possuem departamentos para dar suporte às tecnologias, são 14%.
O que não é falado pela pesquisa é como esses departamentos são usados, para qual finalidade, e quão conectados estão com os outros departamentos (como artístico ou de comunicação).
Eu já vi museus grandes brasileiros com departamento de tecnologia, mas que servem apenas como “help desk” para assuntos técnicos.
Geralmente, esses departamentos não estão inseridos nas discussões artísticas ou mesmo educativas, e servem apenas para dar suporte técnico.
Isso é refletido, por exemplo, na quantidade de museus que usam seus sites para dar uma experiência virtual de seus espaços para seus usuários.
Apenas cerca de 10% das instituições entrevistadas possuem algum tipo de visita virtual às galerias ou instalações de seus locais.
Muitas vezes feitas por empresas terceiras que vendem esse serviço por preços exorbitantes — considerando o valor do serviço e o valor de um equipamento para capturar e processar imagens em 360º — e que não discutem com o departamento artístico como esse conteúdo deve ser disponibilizado — ou melhor, customizado conforme as necessidades da instituição.
O que se vê são experiências formatadas, pouco dinâmicas, e que pouco se comunicam com os usuários.
A culpa disso geralmente cai sobre o investimento.
Instituições museológicas acreditam — e continuam acreditando e proliferando este discurso — que qualquer atividade que envolva tecnologia é mais um investimento que não foi contemplado no orçamento do ano.
A tecnologia, no fim, acaba sendo considerada mais como um fardo econômico — algo que exige despesa e que em breve será necessário renovar — do que uma estratégia artística e de alcance de público.
Isso é mostrado pelo número de museus que não digitalizam os seus acervos.
Para 48% deles, o grande problema é a falta de investimento, enquanto 24% consideram a falta de uma equipe dedicada como o principal empecilho.
Claro, equipamento e contratação de fotógrafo de qualidade realmente é um serviço caro.
Mas ele é único, ou seja, quando bem feito, não é um investimento constante.
Não à toa, a grande maioria dos museus conta com editais ou patrocínios para fazer a digitalização de seus acervos.
O pulo do gato aqui é que o principal argumento das instituições para ganhar esse investimento é que isso ajudaria a divulgar o acervo a um vasto público que não poderia visitar a instituição ou ver obras que estão fechadas na reserva técnica.
O problema é que apenas 15% dos museus disponibilizam seus catálogos online.
Ou seja, grande parte dos museus usa a digitalização de suas obras apenas para fins de inventário ou catalogação interna e não para divulgá-las para um grande público.
E, mesmo os museus que o fazem, quando disponibilizam seus catálogos online, fazem com imagens geralmente em baixa resolução — o medo de alguém copiá-la é tão grande que vale a pena dar o trabalho para o visitante de dar um Google em Imagens e achar outros arquivos melhores — seguida de informações do próprio inventário, como medida, técnica, coleção, etc.
Agora, qual público usufruiria de tais informações seguida de uma imagem em baixa resolução?
Para que e, mais importante, para quem serve esse tipo de divulgação de seus catálogos?
Somente para um pesquisador super específico de determinado momento da história da arte que pode achar extremamente importante as informações de inventário.
Mas quantas pessoas que você vê no museu param, leem e processam essas informações?
Essas informações não foram feitas para serem decodificadas por um grande público, mas sim por um público diminuto que entende os padrões e o que eles significam.
Ora, se a digitalização das obras era justamente para democratizar seu acervo, por que escolher essas informações para acompanhá-la?
Por que não produzir um conteúdo específico para internet para interpretar e explicar essa obra?
Quando muito se vê, há breves descritivos que tentam explicar a obra e seu contexto, mas novamente são informações para pesquisadores, não para o grande público.
Esse buraco de explorar a linguagem tecnológica em ambiente museológico, no fim, é o que está sendo explorado pelas grandes corporações.
São nestas plataformas, que vendem um modelo pronto para uma rede de museus e com a promessa de um público maior do que o seu costumaz, que os museus consideram a possibilidade de se colocar mais informações além do que seu próprio inventário e ainda usar imagens de alta resolução.
O problema é que a discussão e modelo de como essas informações são disponibilizadas ao público ficam à mercê de interesses privados e comerciais.
Quando os museus perdem o controle — ou até mesmo o interesse — em criar essas significações, modelos e linguagens em seu próprio ambiente, com seus pares, abre-se um vácuo que é rapidamente preenchido por empresas privadas.
Se a discussão e fruição das obras físicas ficam sob a tutela museológica, por que sua disponibilização online deve ficar sob uma outra companhia, distante dos reais interesses públicos?
Por mais que as informações disponibilizadas sejam do próprio museu, a interface que o usuário tem a seu dispor para fruí-la é tão importante quanto o arquivo em alta resolução para mostrar detalhes.
Não se engane: a interface não é neutra e muito menos aleatória.
Ela foi pensada, estruturada, pesquisada e aprovada internamente.
Ela dita modos de apreciação, comportamento, e valoração de um produto tecnológico.
Ela é tão importante que até os movimentos dos nossos corpos, das nossas mãos, são produtos a serem valorizados por meio de patentes.
Somente a Apple patenteou diversos movimentos de mão para controlar objetos em realidade virtual.
Tudo isso para dizer que a forma que se navega por obras de arte online também deve ser uma discussão que o setor museológico deveria considerar como parte de suas atividades.
Deixando essa discussão de lado, outro argumento comum para não investir em conteúdo online é que não há muito interesse por parte do público e que a experiência com o objeto artístico deve ser apenas física.
Acredito que todos concordam que a experiência com uma representação online do objeto é completamente diferente do que fruir a obra fisicamente.
Acho que ninguém — pelo menos que eu tenha visto — argumenta para que a experiência de uma obra seja apenas online — a não ser obras nativas digitais, daí a discussão é outra.
Obviamente, os dois devem coexistir e se complementar.
E o interesse é tanto que, durante a pandemia, plataformas de disponibilização desse conteúdo viram sua audiência mais do que duplicar.
Ora, se essas plataformas possuem grande público, por que não haveria interesse em acessar esse tipo de conteúdo no site do próprio museu?
O que impede um museu de expandir uma exposição física no mundo digital?
Diversas obras são comissionadas para fazer parte de um projeto curatorial, e por que não comissionar uma obra online?
Hoje, grande parte dos museus e instituições culturais utilizam seus sites e mídias sociais apenas para divulgação de materiais para a imprensa, programação futura e passada — e, aqui, somente um breve descritivo sobre o que foi a exposição, sem muitos outros detalhes –, compra de ingressos, e mais detalhes sobre a história da instituição.
Pouquíssimos são os casos que o site ou mídia social da instituição são usados para complementar a experiência da exposição física.
E eu lembro que nós estamos em 2021, então, a discussão sobre o público não ter meios de acessar esse conteúdo não faz nenhum sentido.
Em um estudo ainda do CGI, mas de 2017, se mostra que mais de dois terços da população brasileira são usuários de internet — e entende-se usuários pessoas que acessaram a rede pelo menos uma vez nos três meses anteriores.
Ou seja, mais da metade da população brasileira poderia acessar esse conteúdo tranquilamente.
Claro que a maioria seria das classes A e B, já que neste recorte social, 97% e 95% das pessoas, respectivamente, acessam a internet diariamente.
Mas se existe a possibilidade das outras classes sociais acessarem esse conteúdo nos últimos 3 meses, então, por que não investir nisso?
Já isso traz um bom argumento na hora de priorizar as tecnologias na construção de uma exposição.
Fora que esse material, se bem trabalhado, pode ser um material didático para escolas, e aí o seu público expande imprevisivelmente.
Se você tem dúvidas sobre como isso poderia ser, um grande exemplo é a plataforma aarea.co.
Como suas criadoras o descrevem, “aarea é uma plataforma de trabalhos de arte concebidos especialmente para a internet”.
Nele se pode acessar conteúdos únicos, feitos exclusivamente para o site, que estão totalmente inseridos nas discussões tradicionais de arte.
Para mim, uma obra sensacional que foi comissionada pela plataforma e adquirida recentemente pela Pinacoteca de São Paulo é o supercut feito por Nuno Ramos do Jornal Nacional em que se anunciava o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Nuno fez com que William Bonner e Renata Vasconcellos “cantassem” “Lígia”, de Tom Jobim e gravada por Chico Buarque (dizem que ele escreveu a última estrofe também), entoando em um som robótico “seus olhos morenos / me metem mais medo / que um raio de sol” ou “quando me apaixonei / não passou de ilusão / o seu nome rasguei / fiz um samba-canção / das mentiras de amor / que aprendi com você”.
Lembrando que a Globo, durante os dois mandatos de Lula e o primeiro de Dilma recebeu mais do que R$ 6 bilhões em publicidade federal.
A música “Lígia” foi gravada por Chico Buarque no álbum “Sinal Fechado”, de 1974, em que o compositor só grava músicas de outros músicos como forma de driblar a censura que o estava perseguindo.
Nesta obra, Nuno faz uma relação direta da ditadura de 1964 com o processo de impeachment da presidenta Dilma.
Não só isso, ao usar “Lígia”, Nuno acentua esse “caso de amor” contraditório entre a Globo, que sempre apoiou os adversários do Partido dos Trabalhadores, e os governos de Lula e Dilma, que investiram uma quantia nunca antes vista no conglomerado de mídia.
A obra é didática ao mostrar o fim do relacionamento dos dois.
Esse é apenas um dos exemplos de como obras nascidas no digital podem trazer grandes significados a uma exposição.
Comissionar obras similares não significa um investimento grande de capital, mas sim entender como a mídia funciona e como ela pode complementar um projeto curatorial.
No fim, pode ser que a obra digital acabe sendo até mais barata do que comissionar, por exemplo, cinco helicópteros para voarem em sintonia pela Avenida Paulista, como era o projeto de uma das obras da exposição “Avenida Paulista” do MASP, em 2017 — que só não aconteceu porque o conselho da organização vetou a poucos dias da abertura da exposição, como dizia a própria descrição da obra.
Tudo isso para demonstrar que, às vezes, o argumento de falta de investimento nada é mais é do que uma nuvem de fumaça para encobrir a real razão: preguiça de entender outros meios de produção.
Parece um pouco pesado dizer de preguiça quando nós sabemos que isso envolve muitos outros fatores, mas no fim, acaba sendo… preguiça.
Se os departamentos artísticos e/ou a diretoria vissem a tecnologia como uma companheira, como algo que deve ser explorado em toda e qualquer produção do museu — e não somente quando ela é o foco, como as exposições de artemídia e net art –, o cenário seria completamente outro.
E um cenário que, inclusive, sofreria menos durante a pandemia.
Eu, inclusive, acho que os museus perderam uma grande oportunidade durante a pandemia de explorar novos meios de produção e de geração de receita.
Muitos museus cortaram grande parte de suas equipes — principal e lamentavelmente de educadores, o que a meu ver não faz nenhu m sentido — por considerar que sem a visitação física ao museu não há nenhuma receita que possa ser gerada.
O distanciamento do digital é tão grande que os diretores não viram isso como uma possível oportunidade de utilizar os recursos que já possuem para explorar áreas que não tinham tempo para — ou não queriam — fazer antes.
[Antes de continuar, ponto importante: eu entendo o quanto a pandemia afetou não só o setor museológico, mas principalmente o setor cultural. Entendo também que foram (ou são?) os trabalhos de base para eventos físicos, como montadores e produtores, que foram os mais afetados por esse lockdown e que, ao ter os museus reabertos, é sim uma grande oportunidade de eles voltaram a trabalhar e a ter uma receita constante. Isso tudo eu entendo e vejo como benéfico. A minha questão aqui para vocês é pensar — e problematizar — como em um momento em que não existe mais a visitação física, os museus poderiam pensar em alternativas de receita, inclusive para não precisar demitir ninguém durante tantos meses insertos.]
Antes de voltar para a demissão de grande parte do setor educativo dos museus, é importante também ressaltar que ele, mesmo com o museu ou instituição cultural aberta, é o que mais sofre em termos de exigência (por exemplo, saber falar mais de duas línguas), de tempo de trabalho (que, muitas vezes, o planejamento de atividades não é feito durante horário tradicional) e de pagamento (que nem preciso falar o quão menor é o salário dos educadores se comparado com o do setor administrativo ou curatorial).
Dito isso, a pandemia poderia ser um momento crucial para envolver o setor em atividades para promover a coleção que está fechada e aumentar o alcance de público.
Durante uma conversa do Museum Week deste ano, por exemplo, o Museu de Arte Sacra de São Paulo contou um pouco sobre sua experiência com as redes sociais.
Antes mesmo da pandemia, o setor educativo tomou conta das redes, principalmente o Twitter, para explicar suas atividades e também engajar novos usuários.
Como tantos outros museus, a equipe do Museu de Arte Sacra é muito reduzida, fazendo com que a administração dessas redes fosse impossível pelo departamento de comunicação ou por qualquer outro.
O Educativo, então, vendo a oportunidade, inseriu em suas atividades já definidas a atualização das redes.
Os educadores revezavam entre si para postar e responder os comentários, o que garantia praticamente tempo integral de conversações por meio da rede.
O resultado foi fantástico.
Em muito pouco tempo, o alcance de seguidores subiu drasticamente e eles, inclusive, participaram de conversas com outros museus de outros países.
Por que não aplicar esse modelo durante a pandemia?
Por que não usar os educadores, que não precisam seguir grupos ou fazer visitas guiadas às galerias dos museus, para produzir conteúdo online engajador?
Poderia se trabalhar com as mídias sociais, mas também produzir conversas e atividades lúdicas online com as ferramentas já existentes.
Em vez de palestras gratuitas, que seriam restritas à lotação do anfiteatro, por que não cobrar R$ 2, R$ 3 para um curso que possa atingir 1,000 pessoas ou ainda mais?
Tudo isso produzido por uma equipe que ficaria ociosa sem ter o espaço físico aberto.
Pode parecer um pouco utópico ou ingênuo o que estou a dizer, mas a Serpentine Galleries, de Londres, encomendou um relatório sobre o futuro do ecossistema das artes em que dizia, dentre outras coisas, que a arte não é mais — ou apenas — a peça em si, mas também um ativo cultural estratégico, que não somente envolve seu aspecto físico, mas todas as suas derivações (a digital inclusa).
O que isso significa?
Que a situação com os educadores que eu acabei de descrever vai ser, mesmo com o museu aberto à visitação, cada vez mais comum no mundo.
As obras, no fim, deixarão de ter apenas uma valoração no seu aspecto físico, mas também as terão no digital.
Em um paralelo meio esdrúxulo, será como hoje funciona a lojinha dos museus: os produtos derivados de obras icônicas são mais caros do que os de obras menos conhecidas do grande público.
O mesmo aconteceria no digital: haverá uma valoração da relação de rede que a representação digital de uma obra tem em um determinado ambiente.
O relatório sofre de um determinismo tecnológico muito grande, em que tecnologias caras e não tão acessíveis são consideradas como a salvação, mas ele já aponta para o que uma instituição que vive da especulação da arte (ou seja, uma galeria), vai passar a investir.
Se dará certo ou não, é outra questão.
O importante é entender que o digital já não dá mais para ser ignorado, e deve sim ser pensado como fonte de renda e de atuação de todos os museus.
Sem cair na discussão de novas tecnologias que não são tão democráticas (como realidade aumentada ou virtual), quero focar um pouco e novamente na digitalização dos acervos.
Eu acredito que quando a representação de uma obra está em meios digitais, ela possui uma outra vida, uma outra rede, uma outra forma de fruição.
A documentação de uma obra quando aparece em um site, imediatamente quando se finaliza a atualização do banco de dados e a imagem está “no ar” para qualquer um acessar, ela se desconecta de sua matriz original e se torna, si própria, um novo objeto — como já apontado pelo então relatório da Serpentine Galleries.
Essa imagem, gerada por uma instituição que possui as credenciais para garantir a veracidade de cor e de metadados embutidos naquela imagem, ganha uma rede própria, muito similar à rede descrita pelas legendas de obras em espaços físicos com os nomes, por exemplo, do colecionador ou galeria.
Essa rede pode tanto estar relacionada com os sites que essa obra aparece pelos mecanismos de busca (se ela aparece em um site de um museu tem mais relevância do que se aparecer em um blog), quanto também em quais outros portais ela aparece sob diferentes contextos (como por exemplo para ilustrar ou divulgar determinada exposição).
Hoje, se buscarmos por “Van Gogh Starry Night” em mecanismos de busca, encontraremos diversas ocorrências separadas por tipos (vídeo, notícias, imagens, etc).
Essas ocorrências são, sim, um princípio de rede da representação digital da obra.
Mas que, por enquanto, não está organizada e muito bem formatada para nos dar um sentido mais detalhado sobre sua própria rede.
Na aba só de imagens, por exemplo, há uma referência de cor em questão, já que a mesma pintura pode ter cores completamente diferentes dependendo do arquivo que se vê e da digitalização que foi feita.
Nas ocorrências completas, com todos os sites que citam a obra, é possível ver diversas entradas que falam — e mostram — a obra, incluindo links para a “digitalização original” publicada pelo museu que possui a obra em sua coleção.
Essas informações de onde essa obra está sendo citada podem ser equiparadas às informações de propriedade (qual coleção aquela obra faz parte) e de histórico de exposições (por onde aquela determinada obra já passou e foi exposta).
Embora essas informações sejam facilmente apuradas, o que ainda falta é a criação de mecanismos para formatar esses dados para que possam ser considerados como uma fonte importante nos estudos sobre os impactos e repercussões que uma única obra de arte tem em um ambiente digital.
Ou seja, os mesmos critérios de avaliação do sistema da arte: quantas vezes tal artista é citado em revistas especializadas, quem já comprou suas obras, em quais exposições participou, e em quais coleções suas obras figuram.
Enfim, um sistema de métrica que se possa quantificar e qualificar.
Conforme os projetos de digitalização dão passos mais largos e coleções inteiras estão adentrando o ambiente digital, a documentação de uma obra ganha força para romper com a sua matriz original e se tornar um objeto em si, imaterial, que produz e traz significações próprias.
Mas, para isso, é necessário que as instituições estejam abertas a adentrar um campo incontrolável e, até mesmo, irrastreável sobre onde aquela “nova obra” chegará.