Eu fui convidado pelo artista, curador e diretor artístico do Red Bull Station, Fernando Velázquez, para dar uma palestra sobre a minha experiência com coletivos usando como estudo de caso o BaixoCentro. Junto a mim, estavam Kiko Dinucci, músico do Metá Metá e tantos outros projetos; e Rodrigo Araújo, do coletivo Bijari.
A palestra, em breve, estará está em vídeo no site.
Abaixo, segue a minha fala que estruturei em um artigo.
NÓS DA CRIAÇÃO COLETIVA
Por Thiago Carrapatoso
Quando recebi o convite para fazer parte desta mesa, sugeri convidar outros colaboradores do BaixoCentro para fazer parte da conversa, de forma que não ficasse apenas um representante do movimento dando sua opinião, mas sim que se abrisse para que outros pudessem dar suas outras perspectivas sobre a criação e funcionamento do coletivo. Me disseram, porém, que era um convite pessoal, em que, claro, considerava que eu faço/fazia parte do BaixoCentro, mas também se interessava pelas outras iniciativas e estudos que fiz sobre a questão da colaboração em meios digitais contemporâneos. Então, em vez de falar sobre o BaixoCentro propriamente, vou fazer uma breve introdução e usá-lo como estudo de caso para partir para outros questionamentos que, acredito, são interessantes para esta mesa.
O BaixoCentro é um movimento que começou sua articulação em 2011 como resposta às políticas públicas repressoras vigentes (o então prefeito era o Gilberto Kassab) e à especulação imobiliária latente na região central de São Paulo, tendo o projeto NovaLuz como representante principal, o qual estabelecia a demolição de 33% da região próxima à Sta. Ifigênia. Neste processo, se percebeu a falta da participação da sociedade civil sobre as questões urbanas e tão próximas de qualquer cidadão. Como dizíamos na época, as ruas estavam em disputa. E a sociedade não estava nem sendo considerada na discussão. Para engajar as pessoas nestas questões, então, decidimos organizar um festival de rua, sem curadoria e aberto para qualquer um com uma proposta de atividade, sem pedir permissão para a administração pública e sem receber patrocínio de iniciativa privada. Um festival feito por pessoas e para pessoas. Com tudo isso, arrecadamos quase R$ 90 mil por meio de financiamento coletivo, cuidamos de mais de 700 atividades nesses quatro anos, e incentivamos com que outros coletivos e pessoas usassem nossos equipamentos para ocupar as ruas com programação cultural gratuita. Como não tínhamos a Polícia Militar ao nosso lado (ainda bem!), não temos a fictícia contagem de público. Mas, hoje, nossas redes sociais contam com mais de 15 mil e 500 curtidas na nossa página no Facebook, quase 8 mil e 500 pessoas que fazem parte do nosso grupo de discussão também nesta rede social, e um pouco mais de 400 que recebem nossas mensagens em nosso grupo de e-mail. Escrevemos artigos para revistas acadêmicas como a revista V!RUS, da USP, e para publicações de galerias de arte, como a publicada pelo Ateliê 397; participamos de exposições internacionais sobre ativismo, como o Global Activism, da ZKM Media Museum, na Alemanha; e conseguimos com que várias pessoas não gostassem da gente (ou nos parodiassem), como o histórico Cordão da Mentira, que passou a adotar o slogan “As ruas são para lutar” em contraposição ao nosso “As ruas são para dançar”; o coletivo Zagaia, que publicou diversos textos (ou como eles chamam, artigos) sobre quão vazio era o movimento; e de diversos motoristas que tiveram seus carros sujos de tinta por causa da nossa primeira intervenção em um cruzamento na Avenida São João, em que jogamos cerca de 400 litros de tintas de diferentes cores no meio da rua para que os carros pintassem o asfalto cinza dessa enorme metrópole que é São Paulo.
Quando estávamos nos estruturando para criar o grupo, e muito por estarmos imersos na Casa de Cultura Digital, pensamos em aplicar a metodologia das comunidades de software livre dentro de um movimento que prega o direito à cidade. A ideia era que fosse um movimento horizontal, auto-gestionado, sem hierarquias e totalmente independente. Sem tarefas definidas, um dia se podia estar batalhando na comunicação e articulação em nossas redes para virar nossos financiamentos coletivos, e no outro estar no meio da rua batendo nas janelas das casas que beiram o Minhocão para pedir uma tomada amiga. Cada um pega a tarefa que quer e que mais se identifica, sem precisar se pensar em ter uma educação formal ou experiência com determinada tarefa. Desta forma, também, não se fincaria o movimento a determinadas pessoas e possibilitaria com que ele fosse mais flexível, com cada um ocupando as lacunas que faltavam de forma orgânica.
Isso tudo na teoria.
E foi na teoria que Yochai Benkler junto com Helen Nissenbaum fizeram uma análise, publicada no The Journal of Political Philosophy em 2006, sobre as comunidades de software livre e como elas trabalham a virtuosidade do cidadão. Quando se se dedica a um bem comum (que pode ser tanto um software de computador quanto a ocupação dos espaços públicos de uma cidade), de acordo com eles, é que se desenvolve uma moral e ética colaborativa que, depois, é revertida para toda a sociedade. Ou seja, os dias que você passa em frente ao seu computador isolado e conversando e trocando códigos com uma comunidade online serão muito bem revertidos para a sociedade em geral, já que você será uma melhor pessoa moral e eticamente falando. Um virtuoso, por fim. E por virtude, eles definem como “as situações que envolvem as faculdades de escolha, julgamento, desejo, emocionais e de ação”. Para que uma comunidade possa ser enquadrada como compartilhada entre pares (ou seja, um coletivo sem hierarquia definida), para os autores, ela precisa ter três estruturas: 1) as tarefas precisam ser modulares de forma a ser divididas entre os voluntários; 2) possuir variações de engajamento, sendo umas atividades mais complexas e outras mais simples, como meio para atrair o maior número de perfis para as tarefas – e consequentemente agilizar o processo de produção, uma vez que as tarefas são pulverizadas; e 3) ter um baixo custo na execução de cada módulo para a construção de um produto final. Repetindo: 1) módulos, 2) variações de complexidade das tarefas e 3) baixo custo. Como se vê e como dito anteriormente, a organização do BaixoCentro se enquadra nas três estruturas. Mas quais seriam as virtudes trabalhadas dentro de um coletivo? Benkler e Nissenbaum as dividiram em quatro diferentes clusters, que são: 1) autonomia, independência, liberdade; 2) criatividade, produtividade e processos industriais (aqui, no sentido genérico do termo); 3) benevolência, caridade, generosidade e altruísmo; e 4) sociabilidade, camaradismo, amizade, cooperação e virtude cívica. Para eles, não é necessário possuir essas qualidades antes de se engajar em um determinado coletivo. Pelo contrário. Será dentro deles que a virtude será trabalhada e desenvolvida. Como eles falam, “nós sugerimos que a emergência da produção por meio de pares ofereça a oportunidade para que mais pessoas se engajem em práticas que permitem que se mostre e experimente comportamentos virtuosos.” Ou seja, se você for um reacionário, troglodita, misógino e individualista, trabalhar em coletivo vai te curar de todos os seus problemas.
Indo um pouco mais além, a pesquisadora Claire Bishop, em suas análises sobre arte participativa, acredita que não é somente dentro do núcleo de organização que se trabalha a virtuosidade cívica, mas também quando se está interagindo com a intervenção criada. De acordo com ela, “para muitos artistas e curadores da esquerda, a afirmação de Guy Debord sobre a alienação e os efeitos divisórios do capitalismo em seu A Sociedade do Espetáculo atinge no coração do porque participação é importante para o projeto [arte participativa]: ele re-humaniza a sociedade atávica e fragmentada pela instrumentalização repressiva da produção capitalista.” E ela vai mais fundo ainda: “arte participativa, em seu sentido mais restrito, acaba com a ideia de espectador e sugere um novo entendimento de arte sem audiência, uma arte em que todo mundo é produtor. Ao mesmo tempo, a existência de uma audiência é impossível de se eliminar, uma vez que é impossível para que todo mundo participe em todos os projetos.”
Voltando ao BaixoCentro, para justamente quebrar esta barreira entre quem é produtor, quem é artista e quem é público (porque nós vemos todo mundo como sociedade civil e é isso que é importante para a gente), nós criamos a figura do “cuidador”. Em vez de pensar em uma curadoria formal em que atividades são escolhidas dentro de um escopo definido por alguém (ou alguéns), nós decidimos aceitar toda e qualquer atividade que a gente recebeu pelas chamadas públicas. E em vez de produzi-las no sentido mais prático do termo, designamos alguém para cuidar da atividade junto ao proponente. Assim, nós não éramos responsáveis inteiramente pela produção da intervenção, e os artistas – ou proponentes – não deixavam de participar na construção real de sua ideia ou projeto. “Somos todos produtores”, como dizemos.
Quando vi a descrição da mesa de hoje, não pude deixar de reparar no título: “Nós da criação coletiva”. “Nós da criação coletiva”. Quando falado, sem pensar na gramática da construção, o “nós” nos remete a uma primeira pessoa do plural. Algo que não só me contempla, mas como também contempla tantos outros. Mas quem seria esse “nós”, esses outros? Quais pessoas estariam dentro da classificação de atores ou agentes de uma construção coletiva? Seriam os organizadores dos coletivos, um núcleo duro, como a gente do BaixoCentro chama? Ou seriam todos os proponentes, no caso do BaixoCentro, que se propuseram a dedicar tempo e energia para fazer atividades nas ruas? Seriam os diferentes públicos que também estão inseridos dentro desta construção, já que são eles quem consome e é modificado por todo este processo?
A meu ver, antes mesmo de se pensar em respostas a essas perguntas, o mais interessante desta primeira pessoa do plural, desse “nós”, é a ideia de haver um Outro com quem nos identificamos. Uma identidade que não necessariamente é unidade (somos todos iguais), mas que relaciona as diferentes práticas a um fim que, teoricamente, possui uma similaridade de processo. Então, a pergunta vira outra: qual é esse processo que nos identifica e que nos relaciona? O que é essa “criação coletiva” que classifica a nossa forma de atuação? E o que diferencia essa “criação coletiva” de uma não-coletiva? Seria a falta de um Outro no mesmo processo? Mas qual criação se pode falar que não depende de um Outro para acontecer e ser realizada?
Agora, se analisarmos o título pelo ponto de vista gramatical, da ordem da língua portuguesa, o “nós” sem ser seguido por uma vírgula para definição de um aposto pode ser entendido (não que seja o caso) como laços, como aquelas amarras feitas em cordas para segurar determinado objeto. E caindo para um linguajar popular, os “nós” se tornam os problemas, as complicações de determinado assunto. Por exemplo, “aquele trampo lá deu um nó, mas um nó, que só a Sta Desatadora de Nós para resolver”. Daí, então, por esta perspectiva, quais seriam os “nós”, os problemas, de uma criação coletiva? Será que são só virtudes que são geradas quando nos relacionamos tão próximos do Outro?
O que Benkler, Nissenbaum e Bishop esquecem é que comunidades (ou movimentos ou coletivos), sejam eles online ou físicas, não são espaços neutros em que apenas qualidades (ou virtudes) são trabalhadas. Nelas, também se vêem muitos vícios em suas dinâmicas, como alguns casos de quando “forks” (ou seja, outras comunidades que trabalham com o mesmo código base, mas querem ir por um outro caminho) são formados e quebram a harmonia de todo um grupo. A meritocracia, que é base também para as dinâmicas das comunidades de software livre, também surge como um grande problema, uma vez que um integrante pode se diferenciar dos demais e, dependendo do que for, pode gerar mais atritos e muito menos virtudes.
Durante o processo do BaixoCentro, tivemos diferentes aproximações com outros coletivos que atuam (ou começaram a atuar) nas ruas de São Paulo. Lembro que o primeiro festival foi organizado em 2012, ano de eleição para a prefeitura da cidade. Logo depois de organizar as mais de 120 atividades em 10 dias no fim de março daquele ano, a campanha do agora prefeito Fernando Haddad nos contatou para que explicássemos o movimento ao então candidato. Como somos um grupo independente de órgãos públicos ou privados, não participamos do encontro, já que a gente teria, então, que fazer o mesmo com todos os outros candidatos, o que não convinha e nem era de nosso interesse. Tempos mais tarde, porém, surge a gigantesca campanha política “#Amor Sim, Russomano Não”, em que o princípio era ocupar um espaço público (no caso a Praça Roosevelt, então denominada Praça Rosa, para amenizar o vermelho-PT) com atividades culturais durante um dia inteiro como manifestação contra um candidato. A iniciativa deu tão certo que um filho surgiu, o grupo “Existe Amor Em SP” que, como o BaixoCentro, organizou diversas atividades em espaços públicos, mas dessa vez espalhados pela cidade e não focados em uma determinada localidade. O “Existe Amor”, como é bem sabido entre os grupos e coletivos que atuam nas ruas de São Paulo, foi a primeira entrada do Fora do Eixo no eixo Rio-São Paulo. E, neste processo, vários integrantes do próprio BaixoCentro participaram do Existe Amor, organizando atividades e discutindo sobre o uso cultural dos espaços públicos. Cogitou-se, então, um apoio formal do BaixoCentro ao Existe Amor, como se os dois movimentos fosse apenas um só. O problema é que parte das pessoas que integram o BaixoCentro era totalmente contra o Fora do Eixo, suas premissas e, muito mais importante, a forma como eles se organizavam e tratavam seus integrantes.
Olha o nó!
Nas comunidades de software livre, o “fork” surge como uma possível solução. Ou seja, se um determinado grupo do coletivo quer, por exemplo, quer uma derivação daquele código se torne proprietário e não mais aberto e livre, o “fork” é criado. Dessa forma, o grupo se desmembra e os dois objetivos podem ser atingidos. Mas o processo do “fork”, em algumas vezes, não é tão virtuoso e simples quanto se parece. São necessárias muitas discussões e tentativas de entendimento do Outro que vão além de qualquer preparo anterior. E como já disse Benkler e Nissenbaum, não é preciso ter as virtudes antes de participar destes grupos.
No fim, no caso do BaixoCentro, depois de discussões homéricas, continuamos com o BaixoCentro independente e sem ligações formais com o Fora do Eixo (digo “ligações formais” porque durante o segundo festival – se por interesse, pirraça ou apenas altruísmo, não sei – eles montaram o QG de documentação no mesmo local que o nosso, lá na Casa de Cultura Digital). Mas o que me interessa deste caso é o embate com o Outro para se tentar chegar a uma solução.
Existe uma passagem em um livro de Chantal Mouffe em que ela explica os conceitos da “democracia radical” que eu sempre uso em textos sobre o BaixoCentro. Para Mouffe, o espaço público é o lugar de antagonismos que geram uma democracia na raiz, radical. É o conflito entre os diferentes que torna possível a pluralidade da sociedade e que ideias opostas coexistem até se chocarem em uma discussão necessariamente política. Ela diz: “quando aceitamos que toda identidade é relacional e que a condição de existência de qualquer identidade é a afirmação de uma diferença, ou seja, a determinação de um ‘outro’ que irá atuar com o papel de um ‘excluído constituído’, é possível entender como o antagonismo emerge. No âmbito das identificações coletivas, nas quais o que está em questão é a criação de um ‘nós’ pela delimitação de um ‘eles’, a possibilidade sempre existe de que a relação nós/eles se torne uma relação do tipo amigo/inimigo. (…) Isto pode acontecer quando o outro, que era considerado até aquele momento apenas como um modo de diferença, começa a ser perseguido como negador de nossa identidade, como se questionasse a nossa própria existência. A partir desse momento, qualquer tipo de relação nós/eles, seja religiosa, étnica, de nacionalidade, econômica ou outras quaisquer, se torna palco para um antagonismo político.”
E é essa relação entre “nós/eles” que, acredito, está imersa dentro da concepção de uma “criação coletiva”. O “nós”, se voltarmos a considerar como pronome da primeira pessoa do plural, é uma afirmação de que existe um outro, um “eles”, um diferente ali que faz com que nos delimitamos como um grupo, um coletivo. Faz com que haja uma identificação dentro de nosso processo que, se não contradiz, é antagônica ao que é então praticada. Mas, ao mesmo tempo, dentro desse mesmo pronome, há um outro “nó”, que é a relação entre as pessoas que se identificam como iguais mesmo sendo completamente diferentes. Ou seja, os integrantes desse “nós”. É a relação intra-coletivo que, também, não deixa de ser um antagonismo político.
Com tudo isso, e já encerrando, o que acho que seria interessante para discutir nesta mesa é a própria caracterização dos processos dentro de uma “criação coletiva”. Se existe realmente um “nós”, pronome, quem faz parte dele? Pegando o caso do BaixoCentro, seriam os organizadores, os proponentes, ou o público? Mas se o público faz parte integrante da própria intervenção, como definir a linha que separa entre o “nós” e “eles”? Até onde podemos falar que uma criação é realmente coletiva ou individual?