Na manhã dessa quinta-feira (28/5), aconteceu, na Câmara de São Paulo, audiência pública sobre a paralisação do Minhocão aos sábados. Mas o que parece uma boa notícia, pode ter resultados irremediáveis às populações que moram na região
Por Thiago Carrapatoso, do SP Sem Minhocão, especial para os #JornalistasLivres
Muito se tem comentado sobre as manifestações políticas das pessoas que se chamam de direita (às vezes, eu acredito que elas nem sabem o que isso significa…): que é um atentado contra esquerda, que demonstra que há enfraquecimento do discurso político, que panelas são os meios mais modernos atualmente de se protestar, de que as ruas viraram uma gigante frigideira com muitas coxinhas sendo assadas em pleno asfalto. Não importa muito qual perspectiva sobre o avanço da direita nas recentes — e constantes — manifestações que acontecem no país inteiro. O que realmente importa é que a disputa está a acontecer de forma muito mais prática e tátil em tantas outras situações de nosso cotidiano que nem damos atenção (o barulho das panelas é ensurdecedor!).
Foco aqui, por causa de minha experiência com o tema, na questão doMinhocão (mas existem muitos outros, como as manifestações dos professores estaduais em greve e até nas discussões sobre o aumento das tarifas de transporte público em São Paulo). De acordo com o Plano Diretor Estratégico (PDE), o Minhocão deverá ser paralisado ao tráfego nos próximos 15 anos por meio de uma lei específica que defina, inclusive, seu uso futuro: se parque ou se demolido — ou algo no meio termo. Finalmente, um engodo urbanístico da cidade, graças a uma vontade política que também direciona ao fim do uso exclusivo de transportes individuais, pode realmente ter o fim que lhe merece, ou seja, seu próprio fim. É importante salientar que o Plano Diretor, aprovado em julho de 2014, são orientações para a cidade para os próximos anos. Não é uma lei que define e estabelece, mas sim uma abertura e embasamento para leis subsequentes, como essa específica para o Elevado.
O Minhocão foi uma imposição extremamente violenta que o urbanismo da cidade sofreu graças ao então prefeito procurado pela Interpol, Paulo Maluf.
Logo ao assumir a cadeira, Maluf desengavetou um projeto que nem Faria Lima quis fazer, por entender “o efeito que tais obras tinham causado em outras cidades”. Maluf não entendeu — ou não se importou. E, por isso, resolveu colocar uma estrutura de concreto armado no coração de uma cidade que era considerada como “a cidade que mais cresce no mundo” pelo Departamento Coordenador de Assuntos Inter-Americanos dos EUA. A cidade continuou a crescer, assim como a sua desigualdade econômica e social. O centro de São Paulo se viu à mercê de uma desvalorização do mercado imobiliário e seus moradores de barulho, violência e poluição do ar. Ainda para completar, o Malufão batizou sua mais nova aberração em homenagem a ele, grande soberano do Brasil, um ditador que promulgou o AI-5 e podou qualquer tipo de representação democrática: o General Costa e Silva. Isso começa em 1971 e perdura até hoje. “Foi Maluf que fez”, disse uma vez a campanha política.
De lá até cá, muitos prefeitos tentaram desativar o concreto armado, mas sempre se ouviam nas coxias: “e os carros?! O que os carros vão fazer?! Para onde irão?! Meu Deus, os carros precisam ter onde passar!” E isso desestimulava qualquer prefeito a, realmente, efetivar a paralisação do tráfego em cima das estruturas do Elevado. Até hoje. Hoje, nós temos o PDE que respalda a paralização e que exige com que o Executivo e o Legislativo trabalhem juntos para a causa, além de haver uma cultura urbana articulada na cidade pedindo para que menos carros ocupem os espaços públicos (sim, ruas são espaços públicos). Mas qual o problema?
O problema é que o Legislativo, empolgado com os direcionamentos do PDE, criou um Projeto de Lei (PL) antes da aprovação do próprio plano diretor estabelecendo a gradual paralisação do Elevado e, também, definindo que sua estrutura será usada para um parque. “Parque?!”, se perguntaria qualquer um. Sim, um parque! Sem consultas públicas, audiências, ou participação da sociedade civil. E você está enganado se acredita que este PL é um qualquer, que pode ser esquecido e nem votado na Câmara. O PL 10/2014, que define o parque, é apoiado por nada menos do que oito vereadores e sete partidos políticos. Isso significa que a força política que existe dentro da Câmara para ver sua aprovação é enorme! Não é de autoria de apenas um parlamentar, mas sim oito! Não é só um partido, mas sim sete! Parque Malufão em tramitação na Câmara.
Mas quem seria contra um parque em uma cidade feita de concreto? Bom, a questão não é ser contra um parque em si. Quanto mais áreas verdes e de lazer melhor! A questão é como esse parque está estruturado. Se lembra no começo do texto que disse que a real luta entre a direita e a esquerda está na vida cotidiana, no dia-a-dia? Pois bem, só por essa especulação de que o Minhocão poderia ser paralisado a qualquer momento e com um parque, ainda, em suas estruturas, o mercado imobiliário iniciou uma crescente especulação no valor do metro quadrado da região. Os aluguéis que, antes, abarcavam um público de classe média-baixa (grande parte dos moradores da área central), hoje miram na classe média-alta, se não classe alta. Vários lançamentos imobiliários mesmo próximos ao Minhocão também estão com a linguagem de que agora é um ótimo momento para “investir” em imóveis na região. “Investir!”. Não é morar, viver, ou o que for, mas sim “investir”. O fluxo de capital (ou como alguns chamam, o “desenvolvimento” — não vou citar nomes) finalmente chegou — e para ficar — no coração de São Paulo, no palco de uma área multicultural interessantíssima que possui vizinhos peculiares como os usuários de crack. Ah, o desenvolvimento! Tudo, agora, será limpo, claro, e higienizado, prontinho para os bolsos mais abastados usufruírem de uma estrutura de primeiro mundo!
A questão é que o processo de gentrificação (ou elitização, pode escolher) da região é feita de forma extremamente agressiva e culturalmente predatória. Os que viveram dentro desses 40 anos com os problemas que o, agora, Parque Malufão causou em suas vidas serão expulsos da região de forma completamente agressiva: sem projetos de Zonas Especiais de Interesse Sociais postas em prática, ou Habitações de Interesse Social já implementadas, ou Aluguéis Sociais para resguardar os que estão ali vivendo há anos. O Legislativo já definiu o futuro de uma estrutura, mas simplesmente se esqueceu o que vai acontecer com todos os moradores da região. Jogue todo mundo lá para a periferia, bem longe dos olhos dos abastados dessa grande metrópole brasileira, para que eles tenham que passar de três a quatro horas diárias para fazer o trajeto de casa para o trabalho. Em outras palavras, é o direito à moradia e à cidade sendo comido pela elite em um lindo food truck que vende bolovo gourmet!
“Mas o Minhocão já é usado como parque aos domingos!”, explicam os defensores se apropriando dos discursos das manifestações culturais que acontecem na região. A diferença é que as intervenções no centro, como as diversas apresentações do Ilú Obá De Min, não vendem bolovo gourmet a R$ 25 ou uma lata de cerveja por R$ 8. As feiras gastronômicas, que são organizadas praticamente toda a semana agora dentro do conceito de parque, possuem um discurso e estética de elite, que nada tem a ver com a própria região central. Lembra que os moradores da região, em grande maioria, são classe média-baixa? Pois então. Esses discursos e eventos são artifícios para agradar o mercado imobiliário (e, consequentemente, o fluxo de capital) e a própria elite da cidade a “desbravar” (os conceitos de Neil Smith vêm à mente agora) o terreno degradado que é o centro da cidade. São eventos com um fim específico: trazer pessoas de outros bairros para usufruir do grande “investimento” que se molda na região.
“Ah, para com isso, feirinhas são super legais!”, contestam alguns. E são mesmo, mas por que não pensá-las em outras vias até do próprio centro em vez das estruturas do Minhocão?
Ficar ali, todos os fins de semana, com um discurso, estética e preços apenas para a elite fetichiza uma estrutura de concreto armado, como se apenas ali fosse possível pensar em atividades culturais.
Se há a real preocupação em ter mais espaços de lazer, por que não afirmar que qualquer rua pode ser usada para isso? Por que não pensar na feira gastronômica, por exemplo, na rua Adolfo Gordo, onde acontece feiras livres de sábado e já é associada à alimentação para os moradores locais? E, ainda, fica em frente ao Teatro Escola Macunaíma (aliás, quantos de vocês sabem da existência desse equipamento cultural?), que pode se tornar parceiro e propor diversas atividades. Parque Malufão, porém, pensa diferente…
Para tentar engajar a população na discussão e frear a aprovação do PL 10/2104, o SP Sem Minhocão organizou dois fóruns de debates envolvendo as duas partes (desmonte e parque), vereadores e representantes do Executivo. O primeiro encontro, que aconteceu em dezembro de 2014, foi para embasar a discussão, com diversos arquitetos, urbanistas, artistas e tantos outros profissionais dando suas perspectivas e argumentos para cada lado. O segundo evento, já em 2015, abriu espaço para que a população dê seu ponto de vista. No meio tempo, foi organizada também uma caminhadasaindo da Praça Marechal Deodoro para que se pensasse na arquitetura dos prédios que fica escondida por causa do Elevado. Walter Pires, do Departamento de Patrimônio Histórico, estava lá e nos explicou como a concepção dos prédios era organizada junto à prefeitura para que fosse focada no público que anda à pé. Fez-se também um dossiê, com a compilação de diversos textos e depoimentos que saíram desde o início das discussões.
Quando se acreditava que se estava criando massa crítica suficiente sobre o projeto de lei que foi criado sem consultas públicas, eis que o vereador José Police Neto (PSD) traz à luz o PL 22/2015, que define a paralização ao tráfego do Minhocão também aos sábados. Para qualquer um que não quer ver carros em cima do viaduto, o projeto de lei vem muito a calhar, pois acostuma os motoristas a já nem pensarem no Elevado como rota para os seus caminhos com seus veículos individuais. Agora, para quem entende o que está em jogo, a paralização do Minhocão em mais um dia só vai ao encontro às demandas de quem quer o parque.
Será mais um dia para que o bolovo gourmet apareça nas janelas das casas ao redor do viaduto. Parque Malufão vezes dois!
Por tudo isso, tivemos uma audiência com o prefeito Fernando Haddad, no dia 21 de maio de 2015, em que explicamos todos os argumentos e pedimos para que haja maior sintonia entre o Legislativo e Executivo, além de pedir às secretarias também presentes para que liberassem estudos e informações sobre os impactos que o Minhocão causa e o que a sua paralização modificará inclusive no tráfego da cidade. O professor da Universidade Mackenzie, Valter Caldana, eleito para o Conselho Municipal de Política Urbana, entregou um documento em que pede ao prefeito que seja criado um grupo de trabalho sobre o centro da cidade para incentivar ainda mais as discussões não só sobre a estrutura do Elevado, mas também a região inteira (lembra das habitações sociais que ainda não foram implantadas?). O GT, se aprovado, deve discutir o tema até setembro de 2016 e propor um projeto para ser implantado no começo de 2017.
Como se dá para ver, a discussão vai muito além da definição sobre o que fazer com o famigerado Minhocão. É uma discussão sobre qual cidade se quer construir. Queremos uma São Paulo gourmetizada em todos os cantos? O que irá acontecer quando a moda do gourmet acabar? Será que os antigos moradores poderão, então, voltar ao centro e ter seu direito à cidade de volta? Será que emergirá outro espaço na cidade tão multicultural quanto é o centro hoje? Enquanto se está preocupado com o barulho das panelas, a luta cotidiana entre direita e esquerda fica posta de lado. As panelas só estão sendo amassadas nas varandas gourmets porque o que está se cozinhando é a própria cidade.
{{Publicado originalmente nos Jornalistas Livres}}