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Pegando o gancho da entrevista com o Sérgio Amadeu, quero fazer um exercício com você para pensarmos em uma nova estrutura de cidadania, de conceito de Estado-nação, e de fronteiras.

Como foi demonstrado, cada vez mais as empresas de tecnologia estão ganhando poderes até então inimagináveis.

Mas como a gente pode lutar contra? Ou melhor, qual poderia ser o nosso plano para que, no fim, tenhamos meios de nos preservar?

Como isso daqui é um exercício, eu uso a utopia para tentar demonstrar minhas preocupações sobre como nós temos pensado as cidades, as estruturas urbanas e os conceitos sobre fronteiras. 

Isso aqui é um exercício teórico.

Como Stephen Ducombe explica, em vez de me preocupar em colocar dois objetos em comparação, um sendo ruim e outro bom em uma relação extremamente dicotômica, prefiro ir atrás de futuros possíveis, ou criar uma cenário totalmente irreal para, então, explicar os reais problemas dentro do espaço urbano. 

Em outras palavras, em vez de trabalhar em termos miméticos (ou seja, o que o objeto de estudo é realmente), prefiro traçar um projeto de possibilidade (o que o objeto pode ser). 

Só assim para se conseguir sair das entranhas do capitalismo, ou seja, da realidade, para navegar por futuros até então não desbravados.

Além da utopia, outro norte que eu uso é considerar o trabalho do pesquisador similar ao de um etólogo. 

Na introdução do livro “Capitalist Sorcery” (ou Feitiçaria Capitalista, em tradução livre), dos autores Philippe Pignarre e Isabelle Stengers, Andrew Goffey descreve o que significa o trabalho de um etólogo em uma discussão anti-capitalista:

“A etologia requer que nos foquemos um pouco mais próximos na relação que é estabelecida entre o animal [a ser estudado] e o etologista, um foco que, transposto para o campo da política deve nos levar para uma compreensão mais matizada da forma em que o capitalismo constantemente se reorganiza para prevenir que as pessoas o peguem.”

O que isso significa? O capitalismo tem a grande característica de ser tão maleável que é difícil apontá-lo como um real problema. 

Claro, quem estuda as teorias de esquerda sabe quais são as implicações e os grandes problemas de um sistema capitalista, mas o público geral acredita que não há nada o que fazer contra esta situação, como se o capitalismo fosse algo completamente alheio às suas vidas e impossível de se combater. 

É aí que se encontra a feitiçaria. 

Para ir contra esse sistema, então, os autores deste livro, Philippe Pignarre e Isabelle Stengers, decidiram não analisar o capitalismo em si, mas as inter- e intra-relações que o sistema provoca na sociedade. 

Ou seja, o trabalho de um etologista entende as relações de um animal com o seu ambiente, em vez de apenas descrever o animal como um fim em si mesmo. 

É, como dizem os autores, “a arte das consequências, a arte de ‘prestar atenção’ que é o oposto da filosofia do omelete justificando os ovos quebrados”. 

Até então, a luta anti-capitalista era explicada por suas causas e consequências, tendo um sistema econômico gerando a falta de equidade de outro lado. 

Para os autores, porém, a ideia não é justificar a luta anti-capitalista propriamente dita, mas sim entender as consequências reais que o conflito causa em seu ambiente. 

O mesmo procedimento pode ser aplicado aqui: em vez de falar sobre os reais problemas das big techs em nossa sociedade, eu vou apontar e sugerir futuros possíveis que vão contra a estrutura rígida e necessária que fomenta o capitalismo.

Dentro da teoria Moderna de Dinheiro há o conceito de “Chartalism” (ou Cartalismo, mas eu não consegui achar uma tradução em português adequada), que é a crença de que o dinheiro – e consequentemente as divisas – é uma unidade criada por uma autoridade pública de forma a codificar as obrigações sociais de débito. 

Mais especificamente, o dinheiro (ou a divisa) é criado para que exista uma relação de dívida entre a população e um estado nacional. 

Logo, o dinheiro não é uma questão de ordem dentro da sociedade, mas sim de hierarquia entre um estado soberano e as pessoas que vivem naquele território. 

Um exemplo prático para se entender essa relação, é o que aconteceu em Gana, na África. 

O Banco Mundial e o fundo norte-americano USAID fizeram um empréstimo ao governo do país para que se pudesse financiar o mapeamento urbano de seu espaço, com o argumento de que, agora, mais de 50% da população vive em áreas urbanas. 

Enquanto para uns, como acontece nas favelas do Rio de Janeiro, em que a demarcação dos espaços é um motivo de orgulho por inserir uma comunidade dentro de um sistema oficial, neste caso, o principal intuito foi, justamente, criar um sistema para que as companhias privadas de luz, água, esgoto e outros serviços domésticos, pudessem cobrar seus usuários de forma muito mais rápida e eficaz. 

Sem esse mapeamento, as empresas demoravam semanas para conseguir achar a real localidade de um usuário – quando conseguiam – e, consequentemente, cobrá-lo do serviço usado – isso sem contar os diversos “gatos” que eram feitos para conseguir o serviço de graça. 

O mapeamento, então, surge não como uma necessidade urbana vital, mas como uma necessidade do sistema econômico vigente de manter a ordem e garantir a relação de débito.

Richard Sennett, em seu livro “The Uses of Disorder”, que eu falei aqui no primeiro episódio, conclui seu livro com o argumento de que as metrópoles nada mais são do que espaços de fluxo de capital entre cidades, ou seja, elas existem com o foco de que nada impeça com que a relação social de troca pare ou sofra gargalos. 

Essa situação ajuda na alienação social das comunidades referentes ao seu espaço. 

Elas criam campos de concentração – por exemplo, bairros negros, bairros hispânicos, bairros judeus ou mesmo bairros pobres – para evitar o contato com o Outro, o diferente. 

Tudo isso para garantir com que a harmonia sócio-espacial aconteça. 

Quando não se tem o diferente dentro de sua área de atuação (ou de vivência), se consegue focar mais na produção e, consequentemente, evitar possíveis paralizações. 

Para ir contra esse mecanismo, Sennett argumenta que é necessário proibir nomenclaturas de bairros e zoneamentos para que, então, as comunidades não se restrinjam entre si e possam interagir por meio de antagonismos culturais. 

Para ele, o conflito que emergirá na relação entre comunidades diferentes será apenas temporário e, com o tempo, a aceitação ao Outro, ao diferente, será muito mais orgânica e emergente. 

Nisso, o fluxo de capital não é parado, mas ele é considerado em uma relação muito mais social do que imposta por macro-estruturas.

Com tudo isso, o que pude tirar dessa pesquisa foi que a questão da soberania é muito mais latente e que precisa ser discutida mais a fundo do que necessariamente nas interrelações dentro do espaço urbano. 

Agora até que ponto esta soberania é construída ou imposta?

Quando falamos de identidade dentro de um espaço territorial, há a crença de que é conectada a uma determinada cultura ou estado-nação; ou a uma unidade em que diferentes grupos se identificam. 

Aqui, nem estou entrando nas discussões de qual tipo de cultura estou discutindo (se seguindo as escolas alemãs, francesas ou mesmo brasileiras), mas sim na concepção de uma identidade una dividida por entre diferentes pessoas. 

Porém, em um mundo capitalista e, mais recentemente, neoliberal, essas concepções ficam ainda mais difíceis de serem consideradas ou identificadas. 

As barreiras e fronteiras para o fluxo de capital caíram, em que cada vez mais a virtualização da economia impõe novas formas de se relacionar com o espaço físico, o território. 

O trabalho de Teresa Margolles, “Keys (Llaves)” demonstra exatamente isso. 

A artista pediu para que moradores de duas cidades descrevessem em apenas uma palavra seu sentimento em relação a outra, do outro lado da fronteira. Então, pessoas do lado mexicano descreviam o lado estadunidense, e vice-versa. Isso fez com que palavras como liberdade e assassinadas fossem gravadas em chaves por um artesão local aludindo ao conceito de “chave da cidade”. 

Ao analisar a percepção que os moradores de El Paso, nos EUA, e Ciudad Juarez, no México, possuem em relação uma a outra, Margolles demonstra como a fronteira de um país pode ser tão violenta em duas cidades que dividem a mesma malha urbana, mesmo com a histórica relação da economia mexicana com a estadunidense. 

Se o capital pode ir além fronteiras, por que as pessoas não? Por que a imigração é um processo tão seletivo e, muitas vezes, conflituoso? E para quem servem essas barreiras?

Foi pensando nisso que tentei juntar os pontos para propor uma utopia que eu chamo de cidadania transnacional, ou seja, uma cidadania que utiliza os mecanismos de rede para legitimar sua existência e sua soberania além nações e territórios. Se o Facebook e o Google podem, por que eu não posso?

É uma cidadania com foco em aspectos e identificações culturais, que nada tem a ver com se ter nascido em um determinado espaço-nação e nem se ter descendência de outros países. 

A ideia da cidadania transnacional é dar poder e voz para grupos que estão em situações vulneráveis ou que querem se ajudar mesmo estando em continentes diferentes. 

É importante frisar que este é um conceito que eu ainda estou pesquisando e entendendo melhor seus impactos e estruturas, até por isso acho importante dividi-lo com vocês para receber críticas e sugestões sobre a ideia. Então, por favor, comentem, se engajem, entrem no meu site paisagemfabricada.com.br para dar sua opinião.

No primeiro episódio dessa série eu comentei sobre um artigo da The Economist de 2010 em que se discutia sobre o Facebook ser considerado como um país por sua dimensão gigantesca e comentei também sobre o livro de dois executivos do Google que argumentavam pela existência de uma soberania virtual.

Se você não escutou ou não se lembra, recomendo voltar ao primeiro episódio para entender sobre o que estou falando.

Ora, acredito que nem preciso descrever o quão problemático será se serviços centralizadores e privados como o Facebook e Google tentarem se considerar ou se articular como reais soberanias virtuais. 

E nem preciso alertar o quão assustador é os dois maiores serviços da rede atualmente estarem ou serem considerados como estados-nação, ou discutindo meios de como isso pode acontecer. 

Não podemos esquecer que soberania é algo abstrato, que só se torna oficial quando há aprovação ou afirmação por outros estados-nação. 

A discussão atual, no fim, está na mão das iniciativas privadas, que consomem dados e informações pessoais para vender para outras empresas. Por que, então, deixar essa discussão dentro da esfera privada? Por que não pensar em uma cidadania transnacional emergente, vinda da própria sociedade civil?

Voltando à Teoria Moderna de Dinheiro, os conceitos sobre o “Chartalism” (Cartalismo) foram revistos em um novo termo que não é muito diferente do original. 

Enquanto “Chartalism” prega o dinheiro sendo uma criação de um poder estatal, o “Neo-Chartalism” (ou Novo Cartalismo) prega que a relação entre estado e sociedade é o que legitima o dinheiro por meio dos impostos e pela confiança que existe entre ambas as partes na divisa determinada. 

Só pela obrigação determinada por um estado soberano a um cidadão para o pagamento de determinadas taxas e havendo a confiança de que aquele dinheiro é o necessário para sanar as dívidas, é que há a autenticação de uma real divisa. 

Como Pavlina Tcherneva fala em seu artigo “Chartalism and the tax-driven approach to money” (ou Cartalismo e a introdução ao dinheiro por meio de impostos, em tradução bem livre), 

“Neo-Cartalismo é apropriadamente subordinado sob a ampla escola de pensamento do Cartalismo. Quando é dito que ‘dinheiro é a criatura do Estado’ ou quando ‘impostos orientam o dinheiro’, duas coisas são importantes para se ter em mente. Primeiro, ‘Estado’ se refere não somente aos estados-nação modernos, como também para qualquer autoridade governamental, como soberania do governo, antigos palácios, padres, templos ou governos coloniais. Segundo, ‘impostos’ significam não somente uma renda, Estado ou outro órgão fiscal modernos, como também qualquer obrigação não-recíproca para aquela autoridade governamental – multas compulsórias, taxas, direitos, tributos, impostos e outras obrigações.”

Se o dinheiro se determina pela obrigação de uma soberania ao cidadão e pela confiança compartilhada do cidadão e do estado com uma divisa escolhida, o que nos impede de decidir e de estabelecer uma divisa para a nossa cidadania trasnacional? O que nos impede de articularmos um poderio econômico suficiente por meio de 

criptomoedas, como o Bitcoin, para pautar estados-nação a assuntos sócio-culturais? 

Já é sabido, como visto pelos casos do Facebook e Google, que em nossa sociedade, quem tem mais poderio econômico e acesso às informações pessoais dos cidadãos é quem tem mais poder. Por que, então, não pensarmos em criar uma identidade e soberania focadas em aspectos culturais – e não territoriais – para nos ajudarmos mutuamente além das nações?

Um breve exemplo seria criar uma cidadania para a sociedade LGBTQIA+ que sofre, constantemente, com diversas leis nacionais em diferentes países – além do próprio preconceito cultural –,  para que ela pudesse criar um mecanismo de benefício mútuo além fronteiras. 

Não é de hoje que se discute o real poder do que é chamado de “pink money” (dinheiro rosa), ou seja, doações ou poderio de consumo dessa própria sociedade. 

Em 2012, de acordo com um artigo da Wikipedia, o consumo vindo dessa sociedade chegou, só nos Estados Unidos, a quase US$ 790 bilhões. 

Nessa sociedade, ainda, existe o conceito de Vilas Gays, que são espaços geográficos em que essa sociedade pode viver livremente com suas especificidades, sem sofrer abusos autoritários de poder ou de preconceito. 

Por que não ir além da geografia e criar um poder real de articulação mundial? Isso tudo feito pela sociedade civil, sem precisar de organizações sem fins lucrativos ou de órgãos oficiais de determinados países.

Uso o exemplo da sociedade LGBTQIA+ por me identificar, mas também por causa do poder político-econômico que ela tem mundialmente. 

Esse conceito, porém, pode ser muito bem aplicado em outras sociedades/comunidades/culturas, como os próprios curdos, como falado pelo executivo do Google. 

O que se quer, na verdade, é tentar usar as ferramentas de rede hoje disponíveis como meio de dar mais autonomia ao cidadão, sem se considerar governos ou iniciativas privadas.

Neste episódio, não vou entrar em detalhes sobre etnias transnacionais como acontecem com algumas tribos indígenas fronteiriças; nas teorias sobre aceleracionismo, que visa destruir o capitalismo por meio de suas próprias ferramentas, mas exponenciando seus efeitos e considerando o digital no meio de tudo; e nem a construção de uma nova (ou terceira) natureza que considera o digital como natural. 

O que é importante ficar aqui é a possibilidade da construção dessa cidadania, tendo a parte monetária e de divisa como meio para argumentar sobre essa verdadeira alternativa.

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