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“A Internet Deu Ruim” são pesquisas que eu, Thiago Carrapatoso, tenho realizado nos últimos tempos com um viés, digamos, pessimista sobre como a tecnologia nos afeta em diferentes temas.
Isso não significa que a tecnologia é o demônio da nossa vida contemporânea. Na verdade, a ideia por trás dessas apresentações é tentar mostrar tendências e problemas que surgem quando desassociamos as tecnologias das nossas preocupações cotidianas, como se fossem uma esfera da vida (tanto privada quanto pública) à parte do que acreditamos, do que fazemos, do que lutamos para mudar em nossa sociedade.
O espaço digital não é, como muitos acreditam, um ambiente de emancipação em que se pode fazer qualquer coisa que não trará impactos tangíveis no mundo físico. Muito pelo contrário. O que acontece no digital é uma extensão de nossa vivência quanto sociedade, e reflete os problemas, crenças, ódios, relações, lutas, e poderes que também estão no mundo físico.
Eu não tenho a pretensão de apontar uma nova forma de internet e, muito menos, de desenvolver um protótipo de um novo meio para nos comunicarmos e nos relacionarmos. A proposta é instigar você para essas realidades antes de avançar em qualquer projeto, argumento, ou uso das tecnologias para trabalhos próprios — ou até mesmo para sua vida pessoal. Por isso, não se assuste com a quantidade de referências um tanto quanto trágicas sobre a nossa sociedade. O primeiro tema, então, será “Arte, Cidade e Tecnologia”.
Para começarmos a nossa conversa é importante primeiro definirmos o que é considerado como cidade dentro deste meu escopo.
Eu sempre gosto, antes de cair na definição de cidade que eu acredito, de relembrar a obra de Ítalo Calvino, “As Cidades Invisíveis”, em que ele narra a descrição feita por Marco Polo de diversas cidades ao imperador Kublai Khan, em uma suposta conversa que nunca existiu, uma vez que os dois não falavam a mesma língua.
Intercalando as descrições com as conversas imaginárias entre os dois personagens, Calvino aponta para diversas formas de olhar e interpretar uma única cidade, Veneza, sem necessariamente precisar especificar que se tratava apenas de um único objeto de estudo.
Nesta obra, o objeto é quebrado em diversas facetas, com diferentes tipos de relações e interpretações, o que ajuda a desmistificar quão complexo é o ambiente urbano e as interações sociais que acontecem com sua estrutura.
Isso acontece desde uma cidade que é descoberta por causa de um mesmo sonho tido por diversos homens, em que perseguiam uma musa nunca alcançável (Zobeide); até outra em que não existiam nomenclaturas das ruas e seus moradores se situavam pelas memórias que tinham por cada parte da cidade (Zaira).
São diferentes formas de ler e interpretar a mesma malha urbana, a mesma estrutura compartilhada. Mas algo que mais me atrai nessas diversas descrições é o aspecto íntimo que se dá às vielas, às marcas deixadas por seus habitantes, aos usos que seus moradores fazem de cada espaço.
Em “As Cidades Invisíveis”, o que menos interessa é a estrutura projetada por processos urbanísticos ou projetos megalomaníacos de urbanistas. A ênfase é nas histórias de seus moradores que usam e modificam a estrutura urbana constantemente, seja pelas marcas que um casal de namorados deixou na parede de uma esquina, seja pela memória coletiva que uma parte da população compartilha.
No fim, uma cidade se faz pelo uso e não por sua estrutura arquitetônica.
Uma outra autora que acredita neste mesmo processo é Jane Jacobs.
Ela ficou extremamente conhecida por ser a ativista que foi contra um dos maiores especuladores de Nova York, Robert Moses — que, aliás, já esteve por terras brasileiras fazendo propostas para a construção do incipiente Metrô de São Paulo.
Foi Jacobs a responsável por barrar diversas construções de viadutos e especulações imobiliárias na região de Greenwich, de Nova York, e a advogar pela participação social nas decisões da infraestrutura urbana da cidade.
No começo do seu clássico livro “The Death and Life of Great American Cities”, ela declara:
Cidades são imensos laboratórios de tentativas e erros, sucesso e derrota no desenho e construção de cidades. Esse é um laboratório em que o planejamento da cidade deveria ter aprendido e formado e testado suas teorias. Em vez disso, os profissionais e professores da disciplina (se assim pode ser chamada) ignoraram o estudo do sucesso e derrota da vida real, não tiverem curiosidade sobre as razões de um inesperado sucesso, e em vez disso são guiados por princípios derivados do comportamento e surgimento de municípios, subúrbios, tuberculose, feiras, e cidades dos sonhos imaginárias — tudo, menos as próprias cidades.
Há uma visível distância entre o que é feito com a estrutura urbana e o que a população da região realmente precisa ou quer.
As cidades são criadas como fruto do imaginário de uma ou um determinado grupo de pessoas e aplicadas violentamente contra comunidades que vivem nos bairros.
O planejamento não passa pela averiguação da sociedade para que ela possa opinar e delimitar o que deve ser feito com o espaço urbano.
Richard Sennett, em seu livro “The Uses of Disorder,” discorre sobre essa relação entre o planejamento urbano e as comunidades afetadas pela reestruturação. De acordo com ele,
planejadores profissionais de estradas, de desenvolvimento habitacional, de projetos de renovação e requalificação urbana trataram os desafios de comunidades excluídas como uma ameaça ao valor de seus planos, em vez de considerá-las como parte natural em seu esforço de reconstrução social.
Em outras palavras, em vez de as cidades responderem diretamente ao que acontece dentro delas, elas são artificialmente projetadas para um fim que muitas vezes contradiz o regular uso de suas estruturas.
Ainda de acordo com Sennett, quando planejadores urbanos são contratados para projetos de grande porte, não há a preocupação com a vida de seus habitantes, mas sim na meta de pensar nas interrelações majoritariamente econômicas que acontecem com outras cidades e regiões.
Ou seja, as mudanças são criadas de forma a garantir que o fluxo de mercadorias e trocas entre municípios aconteça de forma fluída e não haja gargalos.
Esta perspectiva é essencial para a vida da cidade, afinal, o ambiente urbano dentro de um sistema capitalista precisa necessariamente gerar fontes de financiamento para que seus moradores possam sobreviver.
O problema é quando a vida, os próprios moradores que se beneficiariam deste emaranhado que auxilia nas relações econômicas são esquecidos e, até, impostos a certos condicionamentos de vida que nada tem a ver com o que desejam.
Os projetos, por fim, parecem artificiais e não condizentes com a realidade.
O artista brasileiro Milton Machado demonstra essas relações invisíveis no seu trabalho História do Futuro.
Sua obra é muito mais do que apenas uma abstração sobre os fluxos urbanos, mas sim uma identificação e criação hipotética sobre os mecanismos que destroem e constroem cidades ao redor do mundo.
Dividido por três camadas, Machado acredita que uma cidade perfeita é apenas ideal, nunca atingível, e por isso pertencente ao que denomina Mundo Mais-Que-Perfeito.
É neste plano em que o que ele chama de Módulo de Destruição se move para destruir e construir infinitamente novas cidades.
Não interessa quem está vivendo ali. O Módulo, em seus diversos ciclos, destrói tudo que está à sua frente.
A única figura que permanece, consegue fugir e é fundamental para o funcionamento do Módulo de Destruição é a figura do Nômade.
Essa figura é uma decisão filosófica para explicar que somos todos passantes, que não temos possibilidade de fincar raízes nessa abstração que é uma cidade.
Uma cidade não é algo fixo, rígido, estrutural, mas sim uma abstração em constante mudança, em constante movimento.
Como explica Machado,
Para um passante, “uma medida lucrativa” é uma noção totalmente diferente da noção que um proprietário de terras tem de “uma medida lucrativa”. Passantes não pertencem a lugar nenhum. As etiquetas do passante relativas à propriedade [property] e à posse [property] são reguladas por uma economia própria do próprio. Passar por um campo de flores e subir em árvores podem ser razões suficientes para que o passante seja alvejado por tiros. A passagem pode ser facilmente confundida com invasão.
É exatamente isso que acontece quando projetos gentrificadores são incentivados pelas prefeituras para remodelar ou requalificar uma determinada região.
Esclarecendo: gentrificação é o processo de se retirar a população mais pobre de um determinado local para que outra, de um poder aquisitivo maior, possa usá-lo.
Sempre quando alguém usar o termo “revitalizar” para explicar algo sobre um determinado bairro, tenha medo! Porque por trás desse termo relativamente simples, há escondida uma ideologia de urbanização que apaga os usos que acontecem naquele espaço para impor, violentamente — seja pelo uso da força ou seja pelo uso do capital –, um outro projeto de existência.
Revitalização, segundo o próprio artigo da Wikipedia para o termo, significa “processos de reconversão de espaços urbanos abandonados, subutilizados ou degradados mediante a recuperação de antigos (ou a criação de novos) usos e atributos urbanísticos ou naturais.”
Agora, a pergunta que nunca é feita é: quem é que julga que um espaço é “abandonado, subutilizado ou degradado”? São os próprios moradores ou agentes externos, com interesses escusos, que forçam essas classificações? (E eu não vou entrar aqui nos meandros sobre as relações entre empreiteiras e governos para lavarem a jato regiões inteiras de forma que as valorizem para o mercado imobiliário…)
Outro ponto importante dessa questão é: para qual público essas mudanças são impostas?
Grandes projetos gentrificadores, em sua grande maioria, miram na exclusão da camada da população negra, LGBTQIA+ (nesta última, tendo um recorte de classe e racial também) e imigrante para dar espaço a famílias brancas de classe média, cis e heteronormativas.
O nível dessa exclusão é tanto que até fez alguns senadores negros dos Estados Unidos a questionarem Mark Zuckerberg, durante seus depoimentos ao Senado e à Câmara norte-americanas sobre a venda de dados pessoais a empresas terceiras, sobre os motivos que seus anúncios de mercado imobiliário só aparecerem para pessoas brancas.
De acordo com os senadores, propagandas de venda e compra de imóveis não são direcionadas às pessoas negras, o que violaria a Fair Housing Act (ou a Lei da Habitação Justa), uma vez que propagandas não poderiam ser direcionadas explicitamente a grupos raciais.
A resposta de Zuckerberg foi a mais atávica possível: “a maioria de nossas políticas de exclusão hoje são baseadas nas denúncias de nossa comunidade quando surge algo errado”.
Agora, como a comunidade poderá identificar que anúncios de imóveis só são direcionados aos brancos?
A internet, aqui, replicando na sua lógica mais perversa, o que acontece no mundo físico.
Esse tipo de distinção não acontece somente na maior rede social ocidental.
Os algoritmos de busca, que se protegem no conceito de elencar os resultados baseados em “relevância”, também promovem a exclusão de determinadas culturas.
Há uns anos, por exemplo, o mundo viu as plataformas de vídeos e as redes sociais serem tomadas por interpretações do “Harlem Shake”.
Diversos grupos, principalmente brancos do hemisfério norte, gravaram vídeos com danças frenéticas e, muitas vezes, até erotizadas reinterpretando a dança que surgiu no Harlem, em Nova York.
Os mecanismos de busca mostravam milhões de exemplos dessas reinterpretações, mas alguém sabe de onde isso veio e como se originou?
Naquela época, era quase impossível encontrar vídeos que demonstravam a dança de comemoração comum em jogos de basquete no bairro negro de Nova York. Mas as versões com pessoas brancas estavam a dois cliques de distância.
Isso fez com que a plataforma chamada de Policy Mic publicasse um artigo sobre o que eles chamaram de “Internet Gentrification”, ou Gentrificação na Internet.
De acordo com o artigo, a cultura negra diversas vezes na história influenciou a cultura branca.
Mas, em alguns casos, “a cultura branca exagera. Esse ato de exagerar pode ser referenciado como gentrificação cultural” — eu chamo de apropriação mesmo, mas tudo bem… — “na qual os originais são expulsos de seus estilos/modos por causa da magnitude de pessoas copiando seus estilos de vida, que faz com que [as pessoas de onde essa manifestação nasceu] não vejam isso como algo mais interessante de se fazer”.
A apropriação cultural é algo que tem sido constantemente discutido, desde as obras de Picasso até casos em que brancos se apropriam de significantes da cultura negra, como diversos casos recentes.
Mas o que não se discute é como o algoritmo por trás das plataformas de busca acabam contribuindo para essa exclusão cultural.
No fim, para se encontrar o real Harlem Shake, aquele feito para comemorar partidas de basquete, naquela época era uma tarefa hercúlea, em que se precisava chegar à página 12, 13, 14 dos resultados de busca para conseguir ver a origem de tudo isso.
Já nos primeiros resultados, porém, se encontravam os vídeos dos apropriadores, dos brancos.
Logo, uma pessoa desavisada acreditaria que, pela quantidade e pela “relevância”, eram os brancos que criaram aquela determinada manifestação.
Voltando ao Facebook, é importante ressaltar que esse caso de venda de dados de milhões de usuários para a Cambridge Analytica manipular informações e perfilar usuários não é algo isolado ao hemisfério norte.
Isso demonstra um poder de influência dessas poucas plataformas online em nossas decisões políticas e interferem, diretamente, nas decisões sobre para onde nossas cidades serão direcionadas.
Não à toa que se compararmos Trump com Obama nos Estados Unidos se vê uma grande mudança ideológica e para onde as políticas do país caminharam; ou quando se analisa a proliferação de fake news organizada por grupos que se dizem idôneos e apartidários para convencer os eleitores de que determinado candidato é corrupto, mentiroso ou até mesmo terrorista.
Em 2017, a Câmara dos Deputados do Brasil fez uma alteração na lei eleitoral para regularizar propagandas e permitir durante as eleições de 2018 com que partidos e candidatos impulsionassem publicações no Facebook e Google. Apenas. Ressalto: apenas nas duas plataformas.
O artigo 57-C da lei eleitoral afirmava: “É vedada a veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral paga na internet, excetuado o impulsionamento de conteúdos, desde que identificado de forma inequívoca como tal e contratado exclusivamente por partidos, coligações e candidatos e seus representantes”.
Como bem explicou o pesquisador Sérgio Amadeu em um artigo para a revista Fórum, o impulsionamento de conteúdo ficou famoso e acontece majoritariamente nas redes sociais comandadas pelo Facebook.
Blogs, sites, portais de notícias, TV, rádio, e todos os outros meios de comunicação estão vedados de serem canais de divulgação de partidos e candidatos.
No caso do Google, que não faz impulsionamento mas sim publicidade por ad words e por resultados de busca, os deputados criaram um outro artigo para contemplar a empresa.
No artigo 26 da mesma lei eleitoral, em seu segundo parágrafo, definia: “Para os fins desta Lei, inclui-se entre as formas de impulsionamento de conteúdo a priorização paga de conteúdos resultantes de aplicações de busca na internet”.
Ou seja, os partidos, candidatos e coaligações poderiam comprar o direito de seu candidato aparecer como primeiro resultado quando se buscava por palavras-chaves ou mesmo coisas corriqueiras como “porte de arma”, “cidadão de bem”, ou “como fazer coxinhas”.
Para deixar a lei mais absurda e demonstrar a centralização das nossas eleições em apenas duas empresas internacionais, vale ler o terceiro parágrafo do artigo 57-B: “É vedada a utilização de impulsionamento de conteúdos e ferramentas digitais não disponibilizadas pelo provedor da aplicação de internet, ainda que gratuitas, para alterar o teor ou a repercussão de propaganda eleitoral, tanto próprios quanto de terceiros”.
Em outras palavras, se você quiser criar um meio de disseminar o conteúdo de seu candidato sem necessariamente precisar passar por essas empresas, você não pode. É crime!
Trocando em miúdos, as escolhas para governantes de 2018 estiveram nas mãos de duas corporações com sede em outro país e que influenciaram milhões de eleitores. E, pior, isso não é um caso isolado.
As tecnologias hoje comandam e determinam a soberania dos países de uma forma tão imbuída nos nossos afazeres diários que nem ao menos conseguimos perceber de pronto quando e como isso acontece.
Por exemplo, uma forma de discutir e entender a soberania de um país é por meio de seu sistema econômico.
Entender como o dinheiro migra em um mundo globalizado ajuda a questionar quem é o real dono de um determinado território.
A teórica Saskia Sassen questiona o mercado financeiro global para entender como a soberania de um país pode ser entendida em um mundo globalizado.
Para tanto, ela argumenta por uma “nova geografia do poder”, em que acredita ter três componentes:
Um desses componentes diz respeito aos territórios atuais onde a globalização muito se materializa em instituições e processos específicos. E a questão aqui é, então, qual é esse tipo de território? O segundo componente da nova geografia do poder diz respeito a ascendência de um novo regime legal para governar transações entre fronteiras. Se pode ver aqui em funcionamento uma paixão peculiar por diversas formas de ‘legalidade’ guiando a globalização de uma economia corporativa. Há uma quantidade massiva de inovações legais sobre o crescimento da globalização. O terceiro componente da nova geografia do poder é o fato de que o crescimento do número de atividades econômicas estão a acontecer em um espaço eletrônico.
Detalhando o que Sasken explica, o segundo componente, sobre um novo regime legal, está intimamente associado à questão das eleições, como já demonstrei aqui.
O terceiro aspecto, sobre o espaço eletrônico, é facilmente explicado pelo o que é conhecido de flash crash, que é uma queda gigantesca da bolsa de valores em um período muito curto de tempo.
Isso acontece porque, hoje, o mercado neoliberal — de valorização e especulação de commodities — é operado apenas por algoritmos de empresas financeiras para tomar decisões em milisegundos, sem necessariamente se passar pela aprovação de um humano nas tomadas de decisão.
Para se ter uma ideia, o primeiro flash crash aconteceu em 2010 e fez com que centenas de empresas perdessem trilhões de dólares em apenas 30 minutos. A causa? Até hoje, ela ainda é desconhecida, mas a teoria mais concreta é que um simples tuíte falso, se passando por uma autoridade do mercado financeiro, fez com que os algoritmos entendessem uma movimentação falsa como verdadeira e, assim, venderam e compraram ações em quantidades imensuráveis que não faziam o menor sentido em um curtíssimo espaço de tempo.
Como se vê, o nosso atual modelo econômico neoliberal já está nas “mãos” das máquinas.
Agora, o componente que quero detalhar mais é o tipo de território que se está sendo discutido.
Hoje, a força das grandes corporações de tecnologia é tanta que empresas já podem ser consideradas como estados.
Em julho de 2010, a revista inglesa The Economist, publicou um artigo com o título “Social Networks and Statehood: The Future Is Another Country” (ou Redes Sociais e Soberania: O futuro é um outro país) em que descrevia como os milhões de usuários da rede social Facebook naquela época geravam tanto poder ao serviço quanto ao de um estado-nação.
O começo do artigo descreve o encontro virtual histórico entre o recém-eleito primeiro ministro britânico, David Cameron, e o dono da rede social, Mark Zuckerberg.
O intuito do chat era pegar dicas sobre a responsabilidade que é administrar milhões de vidas. Em vez de pedir conselhos a um outro chefe de estado ou mesmo consultar sua equipa dentro de sua administração, Cameron foi pedir conselhos ao soberano Zuckerberg.
Como diz o artigo:
De algum modo, parece absurdo chamar o Facebook de um estado e o Sr. Zuckerberg seu governador. O Facebook não tem nenhuma terra para proteger; nenhuma polícia para assegurar as leis e a ordem; não possui sujeitos conectados por uma clara compilação de direitos, obrigações e sinais culturais. Comparada com uma cidadania de um país, ser membro [da rede social] é facilmente adquirido e renunciado. Nem o chefe do Facebook e seus executivos dependem diretamente da aprovação de um ‘eleitorado’ que pode destituí-lo. Tecnicamente, as únicas pessoas para quem eles precisam reportar são seus acionistas. Mas muitos analistas da web detectam sim características de um país no Facebook. ‘É uma ferramenta que permite com que pessoas se juntem e controlem seus próprios destinos, muito como uma nação-estado’, diz David Post, professor de direito da Temple University. Se essa descrição soa como uma lisonja para os ‘grupos’ do Facebook (muitas vezes reunindo pessoas com opiniões lunáticas e aversas), então é melhor lembrar a clássica definição de uma nação-estado moderna. Como Benedict Anderson, um cientista político, coloca, tais políticas são ‘comunidades imaginárias’ que cada pessoa se sente conectada com milhões de outros anônimos cidadãos. Em séculos passados, as pessoas se espelhavam em seus reis ou bispos; mas em tempos de alfabetização massiva e impressão em línguas vernáculas, como Anderson argumenta, conexões horizontais importam mais.
Cinco anos mais tarde, em maio de 2015, a Carta Capital publica o artigo “O Golpe do Facebook”, que começa com a descrição da última Cúpula das Américas no Panamá, em que, como descreve a revista, “o jovem executivo [Zuckerberg] (30 anos) circulou pela reunião dos chefes de Estado como se fosse mais um deles ou pelo menos como um presidente do Banco Mundial, não como mais um participante do fórum empresarial paralelo. Chegou a invadir, por engano, uma reunião entre os presidentes do Panamá e República Dominicana.”
Isso aconteceu simultaneamente ao acordo feito entre o empresário e a ex-presidente eleita Dilma Rousseff para criar um protótipo do Internet.org na comunidade de Heliópolis, em São Paulo.
A diferença entre 2010 e 2015 é que a rede passou de “apenas” 500 milhões de usuários para 1,4 bilhão, e como pontua a revista, “uma nação (…) maior do que a China”. No segundo trimestre de 2020, a rede social chegou a ter 2,7 bilhões de usuários ativos — e o Brasil era o quarto colocado no número de usuários ativos, com 120 milhões.
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Uma rápida adição aqui considerando os últimos acontecimentos.
Depois da invasão de terroristas fascistas à Casa Branca a pedido do presidente norte-americano Donald Trump no começo de 2021, Zuckerberg bloqueou suas contas do Facebook e do Instagram.
Ele considerou que o uso das ferramentas por Trump gerava um risco muito grande para o país e o mundo, logo ele estaria proibido de usar as ferramentas.
Só para deixar ainda mais claro, é uma empresa privada proibindo um presidente de uma nação de se expressar nas plataformas.
Voltando ao episódio.
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Paralelamente a isso, em 2013, o presidente da Alphabet (que detém o Google), Eric Schmidt, junto com o então diretor do Google Ideas, Jared Cohen, publicam um livro intitulado “The New Digital Age: Transforming Nations, Businesses, and Our Lives” (ou A Nova Era Digital: Transformando Nações, Negócios e Nossas Vidas, em tradução livre).
Nele, há uma pequena seção chamada “Virtual Statehood” (ou Soberania Virtual), em que os autores teorizam a chegada de uma cidadania totalmente virtual.
Como eles dizem, “a saber, nós acreditamos que é possível que estados virtuais sejam criados e que sacudirão o cenário online dos Estados físicos no futuro”.
Para argumentar por tal estado, Schmidt e Cohen usam como exemplo a população curda, que não possui representação fidedigna de seu território, mas possui experiência de quase autonomia, como o Curdistão iraquiano.
Como explicam os autores:
“perseguidos tanto no mundo físico quanto no virtual, grupos que não possuem soberania formal podem escolher emulá-la online. Enquanto não tão legítimo quanto ou tão útil como uma atual soberania, a oportunidade de estabelecer uma soberania virtual pode provar ser, no melhor cenário, um passo significativo para uma soberania oficial, ou no pior cenário, um agravamento que pode levar os dois lados a um confuso conflito civil”.
Mais adiante, Schmidt e Cohen argumentam que os dados dos cidadãos desta soberania virtual podem ser usados para beneficiá-los quando houver algum conflito entre partes.
Ou seja, se os curdos estiverem passando por ataques, bullying ou espionagem virtuais, as informações de que quem possui ou está conectado a esta cidadania podem ajudá-los a receber apoio tanto virtual quanto físico (sejam de entidades governamentais quanto privadas).
E por fim, eles decretam: “Quão bem sucedidas essas reivindicações de soberania virtual serão (o que constituiria sucesso, no final?) ainda há de ser visto, mas o fato de que isso será factível diz algo significativo sobre a difusão de poder estatal em uma era digital.”
A “nova geografia do poder” ajuda a explicar a influência de outras nações em questões locais.
Tendo em vista a acumulação de capital por meio do mercado financeiro, é fácil entender como as fronteiras não são os reais problemas e como soberania é mais conectada com acumulação de capital do que com relações sociais.
Ainda para Sassen, o conceito antigo de soberania enraizada na identidade não mais pode ser aplicada em dinâmicas de capital.
Um exemplo que ela dá é o caso da compra de 3 milhões de hectares no Congo e Zambia pela China para a produção de biodiesel.
Mesmo a plantação não corresponder ao bioma nacional dos dois países africanos, o foco no acúmulo de capital permite com que a compra das terras aconteça sem nem ao menos considerar o impacto ambiental dessa produção.
Mesmo tendo um espaço determinado e uma nação estabelecida, não há segurança sobre quem tem a real soberania dessas regiões.
É por esta perspectiva das instituições financeiras que outra teórica, Doreen Massey, também questiona o espaço das cidades e territórios.
Seguindo os entendimentos de conflitos de Chantal Mouffe e Rosalyn Deutsche, Massey usa Londres como um exemplo de uma cidade globalizada focada no fluxo de capital do mercado financeiro.
Mas, para ela, o imaginário de Londres está preso em uma percepção de qual cidade deveria ser, ou seja, um centro global conectado ao mercado financeiro.
Qualquer imaginação além dessa é podada pelo fluxo interno da própria cidade.
Como Massey diz, “às vezes você tem que explodir a imaginação do espaço ou local para achar dentro dela seu potencial, para revelar a ‘disparidade’ ‘no que se apresenta como uma percepção totalitária’.”
Se o mercado financeiro pode viver em um mundo onde as fronteiras não existem mais, por que os imigrantes ainda têm problemas para entrar em determinados países?
Essa discussão, para Massey, cria o que se aparenta como um paradoxo entre a direita e a esquerda.
Enquanto a direita defende o livre fluxo de capital entre países, ela é contra os direitos iguais aos imigrantes.
A esquerda, por sua vez, é contra a liberdade do capital mas defende veemente a flexibilização das leis para imigrantes.
De acordo com Massey,
Quando aqueles no espectro direito da política argumentam por, digamos, o movimento livre do capital e contra o livre movimento de força de trabalho, isso não significa necessariamente uma contradição. Ela só está aberta para essa questão (e assim aberta para esse tipo de desafio político) quando o argumento é legitimado por um apelo para imaginação geográfica aclamada como universal, e quando (como neste caso) as duas imaginações legítimas contradizem uma a outra. A ‘inevitabilidade’ do mundo moderno sem fronteiras contra a forma natural do mundo em que (algumas) pessoas locais tem o direito de defender, com fronteiras, seus espaços locais. É perfeitamente coerente argumentar simultaneamente pelo relaxamento significativo das leis europeias para imigrantes (maior abertura) e pelo o direito de países em desenvolvimento colocar barreiras protecionistas, digamos, a um setor vital de produção ou uma indústria emergente (maior fechamento).
Hoje, em um mercado neoliberal, os governos — principalmente os do hemisfério norte — têm a possibilidade de explorar as riquezas de outros países de forma legal, simples e em uma velocidade incrível.
Por outro lado, as pessoas ainda possuem dificuldades para passar por fronteiras de diversos países, principalmente se você é de países subdesenvolvidos.
Em seu trabalho intitulado “Homo Sacer”, o artista James Bridle questiona o conceito de cidadania, além de apontar que, para alguns países, ela não é um direito, mas sim um privilégio.
De acordo com o artista, o termo em latim significa “aquele que foi amaldiçoado” e era usado pelas leis da Roma Antiga para banir ou exilar alguém que tenha cometido alguns dos crimes imperdoáveis, como quebra de promessa — já que promessa se refere a Deus e, logo, se você quebrá-la, pode receber qualquer tipo de punição.
Essa pessoa, por ser “amaldiçoada”, poderia ser matada por qualquer um sem penalidades.
Foi somente em 1679, com o surgimento do Habeas Corpus como um instrumento jurídico, que a figura do “criminoso” foi extinta e se definiu que todos possuem os mesmos direitos — pelo menos, na teoria.
Em Homo Sacer, Bridle usa como meio um holograma, que agora estão se popularizando por aeroportos, estações de trem e diversos estabelecimentos, para ler trechos das legislações do Reino Unido, União Europeia e ONU, assim como citações de ministros dos governos, para mostrar que a cidadania pode ser revogada e possui consequências fatais na vida de milhares de pessoas.
Além disso, Bridle intercala a apresentação do holograma com imagens de ataques aéreos realizados nos mais recentes conflitos mundiais — principalmente de drones, que são pilotados à distância.
No fim, o que fica explícito é que pertencer a um país, ter o direito de ir e vir, de não ser bombardeado, é, realmente, um privilégio, em que alguns possuem mais, outros bem menos.
O holograma, então, se torna como uma representação ideal de uma população que não existe, um cidadão-fantasma que nos orienta e tenta nos convencer de que determinada lei, regra, ou condição é a verdade. É a interface sem emoção, sem acesso, que a gente não consegue tocar ou discutir.
Em um artigo em que ele explica o trabalho, Bridle diz:
A tecnologia digital obscurece em diversas maneiras: obscurece no nível da interface, o que faz com que tornem opacas tarefas complexas por meio de interações contínuas através de uma tela; e obscurece no nível do software também, que é feito de código, ilegível para a maioria, inacessível em sua fonte. Aperte um botão e nossos dispositivos ganham vida, se comunicando com servidores distantes, assimilando tarefas, apresentando resultados, realizando coisas, em um segundo, um instante, e nós não sabemos como eles fazem isso. E isso está tudo bem já que você só quer continuar com o seu dia, que é mais importante do que os programas que têm acesso aos seus contatos pessoais ou tenta manipular seu estado de espírito.
Agora, se a tecnologia é inacessível a grande maioria das pessoas, o que dizer de nossas cidades?
Quantos de nós realmente temos participação nas decisões que afetam diretamente nossas vidas, nossa casa, o lugar que nascemos e crescemos?
Onde, neste emaranhado de fluxos, está a minha ligação emocional com um bairro, praça ou até mesmo rua?
Se a tecnologia é inacessível, as cidades também o são.
E, novamente, o virtual reflete o que já acontece no mundo físico.
Por outro lado, a tecnologia também nos ajuda a inserir uma nova camada de informação nas cidades que poucos governantes têm controle.
No fim, embora problemática, a internet pode — e deve — ser usada para novas funcionalidades e aplicações.
Foi pensando nessa abertura que o digital possibilita que o artista brasileiro Cláudio Bueno criou a obra “Les Chant des Sirènes”, parte da série “Monumentos Invisíveis”, em que questiona os monumentos erigidos e as histórias que tentam preservar e definir como a oficial.
Em qualquer cidade, de qualquer lugar do mundo, se pode ver nas vias públicas estátuas e monumentos aos grandes heróis e personalidades que marcaram a história local.
Mas, em sua imensa maioria, essas estátuas são sobre homens, brancos, heterossexuais e pertencentes à elite do país.
As outras histórias, como de mulheres, negros, pobres e população LGBTQIA+, praticamente não possuem monumentos.
Durante, então, uma residência artística que fez em Quebéc, no Canadá, Bueno pesquisou sobre a história do antigo porto da cidade, que é uma zona militar restrita em alguns dias para visitantes pedestres e que só pode ser acessada por navios e embarcações.
Para que os turistas possam visitar a área, é preciso passar pela imigração e ter o seu passaporte checado. Visitantes locais, cidadãos, porém, tem acesso restrito.
Nas suas pesquisas, Bueno descobriu que durante a Segunda Guerra Mundial um navio de comunicação — que era, majoritariamente, composto por mulheres — naufragou exatamente naquela região, matando praticamente toda a sua tripulação.
Como forma, então, de homenagear as mulheres mortas, convidou algumas cantoras de um conservatório próximo para compor uma canção inspirada no canto das sereias, aludindo assim ao perigo e a beleza que são essas mulheres que passavam as informações e coordenadas para diversos soldados, mas ao mesmo tempo foram enterradas e esquecidas no fundo do mar.
Essa obra só pode ser acessada por telefones celulares quando a coordenada do GPS coincide com a localidade: ou seja, um monumento digital.
Tudo isso para afirmar que, sim, a Internet deu ruim — deu ruim mesmo! — e que as nossas cidades também não estão muito longe disso — ou até piores.
Diversas questões e tópicos que são tão importantes para entendermos as nossas vidas, não são divulgadas ou debatidas conforme deveriam.
Entender as cidades é o m esmo que tentar entender a virtualidade: como disse Bridle, elas são obscurecidas.
Mas há, sim, novos meios para contornarmos isso e trabalharmos de forma que: melhoremos o meio urbano que vivemos, e tenhamos mais consciência sobre aquilo que tomamos como certo, comum, como já dado e que pouco podemos fazer.
Termino aqui, então, com esse trabalho do Claudio Bueno que representa, ao mesmo tempo, o belo e o perigoso.