A rejeição

Uma casa de campo, grande, com um jardim de dar inveja a qualquer um. Na garagem, apenas um carro, prata, esporte. Peguei a chave por direito divino, como se estivesse escrito nos anais históricos que ela me pertencia. Meu irmão creu que não. Ele precisava se locomover, com um amigo, para algum lugar que pouco me interessava. Eu, por direito divino, claro, não queria emprestar. Ele, bravo, correu atrás de mim para usar o que por direito divino o deram, a força. Por mais que minhas pernas se movimentassem com uma rapidez imaginada super veloz, as pernas não obedeciam. Ele sempre na cola, na espreita. Desisti.

Sem veículo para me locomover, fui encontrar um pessoal que hackeia, que tem um apartamento isolado para brincar com essas coisas. Não conseguia manter uma conversa com ninguém, então, pulei através da janela. Senti minhas asas criando aerodinâmica apenas para planar, com momentos em que elas se contraíam para me dar mais velocidade e precisão. Philip Glass estava na trilha sonora em um local sem caixas de som. Ao sobrevoar o espaço, muitas árvores e plantas, como se estivesse no interior, e não mais em uma metrópole. Era noite e no horizonte havia uma praia, com uma armação em latão gigante vermelho e uma fogueira. Ao chegar, pessoas que cantam estavam confabulando sem a minha presença, de forma que eu não poderia saber o que havia sido discutido.

É uma pena, pois eles estavam confabulando com pessoas que estudaram comigo na escola, que eu conheço há anos. De qualquer forma, a sensação de exclusão não saiu. Vi que estavam montando um coro para se apresentar à noite naquela instalação, a luz de uma fogueira, máscaras e uma manta também vermelha. Alguém sugeriu que todos nós – incluindo eu – tirássemos uma foto. Eram umas 25 pessoas, e eu fiquei atrás. Quando o fotógrafo posicionou a câmera, abri minhas asas como que as expondo para que todos vissem que eu era diferente, que eu não fazia parte daquilo. E, como um pavão, exibir a beleza daquele algo que, por direito divino, caiu em minhas costas.

Voltei à casa hackeada e havia uma rede de deitar do lado de fora, ligando duas janelas do apartamento. Nela, uma menina deitada. A janela da qual eu saltei estava vedada, gradeada, sem espaço para que eu entrasse. Parei na rede, com um medo de altura absurdo e com a certeza que as minhas asas não funcionariam caso eu caísse. Neste momento, as músicas em piano conhecidas deram lugar a uma composição própria, singular, linda.

Medo. Muito medo de cair. Tentava de todos os jeitos entrar. Chamei a dona, responsável pelo apartamento, que estava tomando banho e saiu do banheiro apenas de toalha, mas mostrando partes de sua intimidade sem pudor algum. Rancor. Ódio. Deixou que gradeassem a janela mesmo sabendo que era a única forma de eu entrar. Descobri, porém, que a janela ao lado estava aberta. Entrei.

As pessoas que cantam estavam ainda confabulando, dentro do apartamento, como se quisessem deixar claro que eu não estava incluído. E como não estava mesmo, fui em direção à porta para voltar à minha vida real e abandoná-los para sempre, pois o peso da minha idade já não suportava tais atitudes mais leves que os poucos anos explicavam. Um dos que cantam ensaiou ir atrás de mim, com cara de desculpas e de que não tinha nada com aquilo. Mas ele desistiu, o que para mim foi um alívio pois não queria encarar nem a face e nem as palavras que seriam enquadradas como hipócritas dois passos de distância dali.

Acordei.

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